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Luta Feminista e Dívida Pública

 Por Maria Lucia Fattorelli[i]

Este artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo esta necessariamente a opinião da diretoria da Fenajufe

As manifestações de milhões de pessoas nas ruas de centenas de cidades brasileiras a partir de junho de 2013 escancararam a insatisfação social diante dos precários serviços públicos oferecidos à população.

As reivindicações mais frequentes durante aquelas manifestações coincidem com as reivindicações dos movimentos feministas do século XXI, que cada vez mais demandam por dignidade de vida para as mulheres, traduzida em serviços públicos de saúde, educação, transporte, assistência, proteção à maternidade e à infância, segurança, além do acesso a moradia e alimentação.

Considerando que tais direitos estão textualmente previstos em nossa Constituição Federal, art. 6o, e tendo em vista que não deveriam faltar recursos no Brasil, 7a potência mundial e rico sob inúmeros aspectos, é imprescindível analisar a destinação dos recursos públicos a fim de buscar respostas às demandas sociais. Essa análise se torna ainda mais premente diante da enorme carga tributária que recai sobre a classe trabalhadora e sobre os mais pobres, ou seja, contribuímos de forma decisiva para o financiamento de políticas públicas.

O gráfico a seguir retrata a destinação dos recursos do Orçamento Geral da União Executado em 2013 e mostra que a dívida pública é a principal responsável pelo não atendimento das necessidades urgentes do povo brasileiro. Em 2013, o total do orçamento executado foi R$ 1,783 trilhão, dos quais nada menos que 40,30% (correspondentes a R$ 718 bilhões) foram destinados a juros e amortizações da dívida. Enquanto isso, a Saúde foi contemplada com somente 4,29%, a Educação com 3,7%, a Assistência Social com 3,41%, a Reforma Agrária com apenas 0,15% e o saneamento Básico com 0,04%.

Orçamento Geral da União Executado até 31/12/2013 por Função

Total: R$ 1,783 Trilhão

Fonte: Senado Federal – Sistema SIGA BRASIL – Elaboração: Auditoria Cidadã da Dívida. Nota: Inclui o “refinanciamento” da dívida, pois o governo contabiliza neste item grande parte dos juros pagos. Não inclui os restos a pagar de 2013, pagos em 2014.

Os orçamentos de diversos estados e municípios também são afetados pela subtração de recursos para o pagamento de dívidas públicas cuja contrapartida não se conhece, pois também não há a devida transparência nos processos de endividamento público dos entes federados[ii].

As demandas básicas dos movimentos feministas atuais esbarram na opção dos respectivos governos em destinar quantias exorbitantes para o pagamento de questionáveis obrigações financeiras vinculadas a dívidas que nunca foram auditadas, em detrimento de suas obrigações sociais previstas no art. 6o da Constituição Federal, antes mencionado. Dessa forma, restam desatendidas reivindicações elementares como creches, impedindo que muitas mães possam trabalhar e contribuir com o sustento familiar.

Esbarram também nas equivocadas opções de destinar muitos bilhões de reais para a demolição e construção de novos, luxuosos e onerosos estádios para a Copa, que também provocarão o aumento das dívidas públicas tanto federal como regionais. Os gastos com a Copa estão de fato exorbitantes, mas os gastos com a dívida pública têm sido os principais responsáveis pela negação dos direitos sociais. Para se ter uma ideia, com os R$ 718 bilhões gastos pelo governo federal com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública em 2013 seria possível construir 595 estádios do Maracanã  ou 397 estádios Mané Garrincha, mesmo considerando o preço superfaturado dessas obras.

Caso fossem privilegiados os investimentos sociais, com os R$ 718 bilhões gastos com juros e amortizações em 2013 poderíamos construir: 929 mil Unidades Básicas de Saúde[iii]; 179 mil Unidades de Pronto Atendimento (UPAs)[iv]; 765 mil escolas de 6 salas de aula cada uma[v].

Nem mesmo as políticas de proteção à Mulher previstas na Lei 11.340/2006, a chamada Lei Maria da Penha, têm sido devidamente realizadas. Em 2013, a previsão orçamentária para o enfrentamento da violência contra a mulher foi da ordem de R$ 191 milhões, isto é, 3.761 vezes menos que o valor destinado à dívida pública federal no mesmo ano. Já o montante efetivamente executado foi de R$ 135 milhões, o que corresponde a um percentual de 71% do que havia sido previsto. A previsão de recursos já era baixa, à vista da necessidade de desenvolvimento desses programas para as mulheres brasileiras e, na prática, os respectivos programas deixaram de consumir a totalidade dos recursos previstos apesar das inúmeras necessidades desatendidas.

Execução do Orçamento do Programa “Políticas para as Mulheres: Enfrentamento à Violência e Autonomia” - 2013

Ação

Previsto para 2013 (R$)

Gastos com a dívida / Gastos deste item

Realizado em 2013 (R$)

Realizado / Previsto (%)

Promoção de Políticas de Igualdade e de Direitos das Mulheres

31.723.750

                                    22.645

20.783.788

65,51

Atendimento às Mulheres em Situação de Violência

124.920.000

                                      5.751

89.114.951

71,34

Publicidade de Utilidade Pública

4.500.000

           159.639

4.499.049

99,98

Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180

10.400.000

                                    69.075

5.768.671

55,47

Incentivo à Autonomia Econômica e ao Empreendedorismo das Mulheres

19.442.500

                                    36.949

14.994.177

77,12

TOTAL

190.986.250

                                      3.761

135.160.636

70,77

Fonte: SIAFI. Elaboração: Auditoria Cidadã da Dívida

Estes dados denunciam a necessidade de maior envolvimento dos movimentos feministas no controle dos gastos públicos e no conhecimento do “Sistema da Dívida”, uma engrenagem que absorve elevados montantes de recursos públicos de forma contínua, transferindo-os principalmente para o setor financeiro privado nacional e internacional.

O mais grave é que não há a devida transparência em relação à natureza da dívida, tanto “Externa”, que já se aproxima dos US$ 500 bilhões, como “Interna”, que já chega a R$ 3 trilhões e paga os juros mais elevados do mundo, impedindo o atendimento aos direitos sociais no Brasil.

Importantes iniciativas têm avançado no enfrentamento desse nó que amarra o nosso país, destacando-se a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Supremo Tribunal Federal[vi]; a CPI da Dívida Pública[vii] realizada na Câmara dos Deputados e a crescente participação de entidades e cidadãos na Auditoria Cidadã da Dívida, mediante a criação de Núcleos em diversos estados.  

Diversas ilegalidades e ilegitimidades do processo de endividamento brasileiro foram documentadas pela CPI, tais como a aplicação de juros sobre juros (prática considerada ilegal pelo Supremo Tribunal Federal); evidências de conflitos de interesses na definição das taxas de juros, face à influência direta de agentes do mercado financeiro; relevantes danos ao patrimônio público em sucessivas negociações da dívida externa e interna que nunca chegaram a ser auditadas; falta de transparência na publicação dos juros nominais efetivamente pagos; contabilização de grande parte dos juros nominais (despesa corrente) como se fossem amortizações (despesa de capital); violação dos direitos humanos e sociais, dentre outros.  O Voto em Separado do Deputado Ivan Valente (PSOL/SP) e análises técnicas realizadas em apoio à CPI da Dívida Pública foram entregues, em maio/2010, ao Ministério Público para o aprofundamento das investigações.

Para se alcançar o pleno conhecimento da natureza da dívida pública é fundamental que seja feita a auditoria dessa dívida, tal como previsto na Constituição Federal de 1988, até hoje descumprida.

O exemplo equatoriano foi um passo histórico para a América Latina. A partir da auditoria oficial que apontou relevantes indícios de ilegalidades no processo de endividamento público, o presidente Rafael Correa suspendeu os pagamentos e, após análises jurídicas que confirmaram a consistência do relatório de auditoria, tomou a decisão soberana de reconhecer somente cerca de 30% do valor da dívida externa com os bancos privados internacionais, o que foi imediatamente acatado por mais de 95% dos detentores dos títulos equatorianos.

A participação na comissão de auditoria oficial da dívida do Equador foi uma das principais tarefas já desempenhadas pela Auditoria Cidadã da Dívida. Aquele processo gerou a redução dos gastos com a dívida, ao mesmo tempo em que liberou recursos que permitiram a multiplicação dos investimentos sociais naquele país, especialmente em educação e saúde[viii]. São impressionantes as visíveis mudanças em decorrência dos efetivos investimentos sociais que em uma década saltaram de 600 milhões de dólares em 2001 para quase 5 bilhões de dólares em 2011, como mostra o gráfico a seguir, que retrata a inversão entre os gastos com a dívida e os gastos sociais naquele país:

O Equador é também exemplo de respeito à questão de gênero, tendo sido premiado em primeiro lugar, pela ONU[ix], devido à experiência aplicada pelo Ministério de Finanças no enfoque de gênero.  Desde 2010, o Ministério de Finanças do Equador incorporou ferramentas orçamentárias que facilitam a visualização do uso de recursos públicos para reduzir lacunas socioeconômicas e inequidade de gênero. Para o ano de 2012, foi implementado o “Classificador Orientador de Gasto em Políticas de Gênero”, que serve para vincular o planejamento com o orçamento e facilitar o monitoramento de políticas públicas nesta matéria. Com este classificador tem sido possível visibilizar o trabalho e os recursos que o Estado destina em matéria de redução de lacunas socioeconômicas e de equidade de gênero; e serve como insumo para formular políticas públicas e redirecionar recursos. Essa experiência abarca a todo o orçamento feral do Estado[x].

O que se pretende com a realização da auditoria da dívida aqui no Brasil é exatamente o mesmo, principalmente considerando os inúmeros indícios de ilegalidades e ilegitimidades identificados nas investigações já realizadas inclusive durante a CPI da Dívida Pública. Além disso, a crise financeira internacional tem afetado o Brasil, e pode se aprofundar ainda mais diante do processo de desregulamentação financeira que tem avançado no país, permitindo emissão e negociação de produtos financeiros sem limites; justamente o que provocou a crise lá fora.

Na Grécia, um dos países mais afetados por essa crise financeira, as mulheres foram as mais afetadas pelo desemprego e cortes de serviços sociais (principalmente creches e assistência social) que tiveram que ser assumidos por estas, já que estavam desempregadas...

Não podemos continuar destinando a maior parcela do orçamento federal ao pagamento de uma dívida nunca auditada, com fortes indícios de ilegalidades e ilegitimidades, enquanto faltam recursos para as necessidades sociais básicas da população e para a garantia dos direitos sociais e da dignidade de vida das mulheres.

Por isso defendemos a realização de completa auditoria dessas dívidas, com participação cidadã, a fim de deter esse “Sistema da Dívida” e permitir que os recursos públicos se destinem ao cumprimento dos direitos sociais. A participação dos movimentos feministas nessa luta é fundamental para a socialização do conhecimento sobre a realidade financeira do país, transformando esse conhecimento em ferramenta de luta social.

[i] Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida www.auditoriacidada.org.br e https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina

[ii] FATTORELLI, Maria Lucia. Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados (2013) Inove Editora, Brasília. 

[iii] Considerando o custo unitário de R$ 773 mil, conforme Portaria nº 340/2013, do Ministério da Saúde

[iv] Considerando o custo unitário de R$ 4 milhões, constante na Portaria 342/2013, do Ministério da Saúde

[v] Considerando o custo unitário de R$ 939,4 mil, constante na publicação “Orientação para elaboração de Emendas Parlamentares – 2012”, do Ministério da Educação, pág. 17

[vi] ADPF 59/2004, que reivindica o cumprimento da Constituição Federal de 1988, conforme Art. 26 das Disposições Transitórias, o qual prevê a auditoria da dívida externa brasileira

[vii] http://www.auditoriacidada.org.br/clique-aqui-para-saber-como-foi-a-cpi-da-divida/

[viii] FATTORELLI, Maria Lucia. Auditoria Cidadã da Dívida: Experiências e Métodos (2013) Inove Editora, Brasília. 

[ix] “UN PUBLIC SERVICE AWARDS 2013”

[x] http://www.finanzas.gob.ec/wp-content/uploads/downloads/2013/07/010.21junio2013_Premio_Equidadb.pdf

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