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Educar para além do capital

Por Ivana Jinkings – 14/07/05

O ensaio que dá título a este volume foi escrito por István Mészáros para a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, no dia 28 de julho de 2004. Nesse texto, o professor emérito da Universidade de Sussex afirma que a educação não é um negócio, é criação. Que educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida. Na sessão inaugural no ginásio Gigantinho, enfatizou o sentido mais enraizado da frase "a educação não é uma mercadoria".

Em "A educação para além do capital", Mészáros ensina que pensar a sociedade tendo como parâmetro o ser humano exige a superação da lógica desumanizadora do capital, que tem no individualismo, no lucro e na competição seus fundamentos. Que educar é – citando Gramsci – colocar fim à separação entre Homo faber e Homo sapiens; é resgatar o sentido estruturante da educação e de sua relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatórias. E recorda que transformar essas idéias e princípios em práticas concretas é uma tarefa a exigir ações que vão muito além dos espaços das salas de aula, dos gabinetes e dos fóruns acadêmicos. Que a educação não pode ser encerrada no terreno estrito da pedagogia, mas tem de sair às ruas, para os espaços públicos, e se abrir para o mundo.

Pensando na construção da ruptura com a lógica do capital, Mészáros reflete nas páginas deste livro sobre algumas questões de primeira ordem, tais como: Qual o papel da educação na construção de um outro mundo possível? Como construir uma educação cuja principal referência seja o ser humano? Como se constitui uma educação que realize as transformações políticas, econômicas, culturais e sociais necessárias?

István Mészáros nasceu em 1930, em Budapeste, onde completou os estudos fundamentais na escola pública. Proveniente de uma família modesta, foi criado pela mãe, operária, e por força da necessidade tornou-se ele também – mal entrava na adolescência – trabalhador numa indústria de aviões de carga. Com apenas doze anos, o jovem István aumentou a idade no seu registro de nascimento para alcançar a idade mínima de dezesseis anos e ser aceito na fábrica. Passava, assim – como homem "adulto" –, a receber maior remuneração que a de sua mãe, operária qualificada da Standard Radio Company (uma corporação transnacional americana). A diferença considerável entre suas remunerações semanais foi a primeira experiência marcante e a mais tangível em seu aprendizado sobre a natureza das empresas transnacionais e da exploração particularmente severa das mulheres trabalhadoras pelo capital.

Somente após o final da Segunda Guerra, em 1945, pôde se dedicar melhor aos estudos. Começou a trabalhar como assistente de Georg Lukács no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste em 1951 e defendeu sua tese de doutorado em 1954. Mészáros seria o sucessor de Lukács na Universidade, porém, após o levante húngaro de outubro de 1956, com a entrada das tropas soviéticas no país, exilou-se na Itália – onde lecionou na Universidade de Turim –, indo posteriormente trabalhar nas universidades de St. Andrews (Escócia), York (Canadá), e finalmente em Sussex (Inglaterra), onde em 1991 recebeu o título de Professor Emérito.

Autor de obra vasta e significativa, ganhador de prêmios como o Attila József, em 1951, e o Isaac Deutscher Memorial, em 1970, Mészáros é considerado um dos mais importantes pensadores da atualidade. Sua experiência como operário que teve acesso ao estudo na Hungria "socialista", em meio às grandes tragédias do século XX, foi possivelmente determinante para a compreensão da educação como forma de superar os obstáculos da realidade: István – assim como Donatella, sua companheira desde 1955 e também professora na rede pública de ensino – sempre militou em defesa da escola da maioria, das periferias, aquela que oferece possibilidades concretas de libertação para todos.

Ele alerta, porém, que o simples acesso à escola é condição necessária, mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos. E que o deslocamento do processo de exclusão educacional não se dá mais principalmente na questão do acesso à escola, mas sim dentro dela, por meio das instituições da educação formal. O que está em jogo não é apenas a modificação política dos processos educacionais – que praticam e agravam o apartheid social –, mas a reprodução da estrutura de valores que contribui para perpetuar uma concepção de mundo baseada na sociedade mercantil.

Mészáros sustenta que a educação deve ser sempre continuada, permanente, ou não é educação. Defende a existência de práticas educacionais que permitam aos educadores e alunos trabalharem as mudanças necessárias para a construção de uma sociedade na qual o capital não explore mais o tempo de lazer, pois as classes dominantes impõem uma educação para o trabalho alienante, com o objetivo de manter o homem dominado. Já a educação libertadora teria como função transformar o trabalhador em um agente político, que pensa, que age, e que usa a palavra como arma para transformar o mundo. Para ele, uma educação para além do capital deve, portanto, andar de mãos dadas com a luta por uma transformação radical do atual modelo econômico e político hegemônico.

Estudioso da obra de Marx, Mészáros acredita que a sociedade só se transforma pela luta de classes. Limitar, portanto, uma mudança educacional radical "às margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação qualitativa. [...] É por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente" .

Usando como referência duas grandes figuras da burguesia iluminista – o economista Adam Smith e o educador utópico Robert Owen –, o autor deste livro advoga que o capital é irreformável porque, pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é incontrolável e incorrigível. Seria, desse ponto de vista, absurdo esperar uma "formulação de um ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em vigor, que considerasse a hipótese da dominação dos servos, como classe, sobre os senhores da bem estabelecida classe dominante" . Naturalmente, o mesmo vale para a alternativa hegemônica fundamental entre capital e trabalho. Não surpreende, portanto, que "mesmo as mais nobres utopias educacionais, anteriormente formuladas do ponto de vista do capital, tivessem de permanecer estritamente dentro dos limites da perpetuação do domínio do capital como modo de reprodução social metabólica" .

Pequeno em tamanho, "A educação para além do capital" é um livro imenso em esperança e determinação. Nele, o filósofo marxista condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a idéia de que não existe alternativa à globalização capitalista. Em Mészáros, educar não é a mera transferência de conhecimentos, mas sim conscientização e testemunho de vida. É construir, libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que a história é um campo aberto de possibilidades. Esse é o sentido de se falar de uma educação para além do capital: educar para além do capital implica pensar uma sociedade para além do capital.

Aos leitores que queiram conhecer melhor as opiniões de István Mészáros sobre educação, sugiro a leitura do capítulo "A alienação e a crise da educação", sobre as utopias educacionais, em Marx: a teoria da alienação, a ser publicado pela Boitempo em 2005. Nessa obra, o pensador húngaro reafirma a necessidade de transcender as relações sociais de produção capitalistas, com o objetivo de conceber uma estratégia educacional socialista. Ele discute nesse texto o conceito de "educação estética" , tentativa isolada de enfrentar a desumanização do sistema educacional na sociedade capitalista. E conclui que a superação positiva da alienação é tarefa educacional que exige uma "revolução cultural" radical para ser colocada em prática.

A tradução que aqui se apresenta foi feita a partir do original em inglês Education Beyond Capital, por Isa Tavares, com texto final de Sérgio Luiz Mansur e Luis Gonzaga Fragoso. A revisão técnica coube à professora de Sociologia da Unesp, Maria Orlanda Pinassi. Nos textos de Mészáros, as notas de rodapé numeradas são do autor; as indicadas com asterisco são dos revisores da tradução e vêm marcadas no final com (N.R.T.).

Registro o agradecimento da editora a Sebastião Salgado, que autorizou o uso da foto que ilustra a capa (uma menina fazendo os deveres escolares e tomando conta dos irmãos enquanto a mãe trabalha) deste livro, cujos direitos autorais – assim como de toda a obra de Mészáros publicada pela Boitempo no Brasil – foram cedidos para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST.

* Ivana Jinkings é editora da Boitempo.

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