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Agência de Notícias

Combate ao racismo

 

Por Flávia Piovesan* – 18/04/05

Enquanto na África o presidente Lula pedia "perdão" pela escravidão em discurso na ilha de Gorée (Senegal), no Brasil o jogador argentino Desábato era detido sob acusação de ofensas racistas contra o atacante afro-descendente Grafite, em jogo de futebol, na última semana.

Estes fatos suscitam a polêmica a respeito do combate ao racismo no Brasil. Como enfrentar a discriminação racial? Qual tem sido a eficácia do combate ao racismo na experiência brasileira?

Estas questões assumem maior relevância considerando duas peculiaridades do Brasil: o 2º país do mundo com maior contingente populacional afro-descendente (perdendo apenas para a Nigéria) e último país do mundo ocidental a abolir a escravidão. Se se considerar os poucos mais de 500 anos do "(re)descobrimento do Brasil", a população afro-descendente viveu 388 deles em regime escravocrata. Como acentua Abdias do Nascimento, "o povo afro-brasileiro é o povo cujos direitos humanos foram mais brutalmente agredidos ao longo da história do país: o povo que durante séculos não mereceu nem o reconhecimento de sua própria condição humana".

Desde 1968 o Brasil é parte da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, hoje ratificada por 170 Estados. Esta Convenção define a discriminação racial como toda distinção ou exclusão baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha por resultado anular ou restringir o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Isto é, a discriminação racial ocorre quando se elege o critério da raça para impedir o exercício de direitos e liberdades, negando-se ao outro a plena condição de sujeito de direito.

Para a Convenção, qualquer doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa. Exige, assim, dos Estados-partes a adoção de medidas internas que condenem e proíbam a discriminação racial.

Na história brasileira, apenas com a Constituição Federal de 1988, um século após o fim da escravidão, é que ineditamente a prática do racismo passou a ser crime inafiançável, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Posteriormente, a Lei 7716/89 veio a tipificar os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, sendo alterada pela Lei 9.459/97, para também contemplar a injúria baseada em discriminação racial (por exemplo, as humilhações, os insultos e os xingamentos), bem como a punição de atos resultantes de preconceito de etnia, religião ou procedência nacional.

Contudo, até 2001, havia tão-somente 12 condenações criminais por racismo no país. Este reduzido universo de condenações reflete um verdadeiro sistema de "filtragens sucessivas", realizadas pelos aparatos da segurança e da justiça, que, por obstáculos de ordem notadamente ideológica e cultural, tem impedido o efetivo combate do racismo no Brasil. O primeiro desafio atém-se à denúncia do racismo, já que, por vezes, a vítima se cala, a fim de evitar reiteradamente o peso da dor e da humilhação, sendo que há ainda um desconhecimento da população em geral acerca do crime de racismo e de como proceder quando da sua ocorrência. O segundo desafio refere-se ao aparato de segurança, posto que as delegacias carecem de maior sensibilidade para responder à gravidade do racismo, que na prática é ainda considerado um crime de menor relevância.

Daí vem o primeiro recorte, na medida em que a maioria significativa das ocorrências de racismo é arquivada. O segundo recorte vem com o aparato da justiça, quando o Ministério Público acaba também por restringir a propositura das ações penais cabíveis, descaracterizando a crime do racismo, sendo complementado com o terceiro recorte por parte do Poder Judiciário, tendo em vista serem ainda ínfimas as condenações por racismo. Estes recortes sucessivos podem, em parte, ser explicados pela crença no mito da democracia racial, bem caracterizado por sentença proferida no processo 256/93 (8a Vara Criminal de São Paulo), que, em 1994, ao julgar totalmente improcedente ação envolvendo a prática de racismo, argumentou que "no Brasil quase não temos exatamente racismo. Os de pele mais escura são ídolos inclusive dos mais claros no esporte e na música, sendo que mulheres popularmente chamadas de "mulatas" parece que têm orgulho dessa situação e exibem-se com grande sucesso em muitos locais da moda e da fama".

Por isso, a urgência em fomentar a capacitação jurídica voltada ao combate à discriminação racial, a fim de que as diversas instituições e atores sociais (delegacias, promotorias, advocacia, magistratura, dentre outros), possam, com maior eficácia, inclusive mediante a criação de serviços jurídicos especializados, responder à gravidade do racismo, que não pode contar com a complacência do Estado. Nesse sentido, o próprio Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação Racial ressaltou sua preocupação com a reduzida efetividade da legislação brasileira de combate ao racismo, recomendando programas de treinamento para administradores da justiça e agentes aplicadores da lei.

A erradicação da discriminação racial é medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais da população afro-descendente no país. A exclusão social e a discriminação racial surgem como termos interligados, a compor um ciclo vicioso, em que a exclusão implica discriminação e a discriminação implica exclusão, em um contexto de desigualdade estrutural em que os afrodescendentes são 64% dos pobres e 69% dos indigentes (dados do Ipea).

O caso do jogador Grafite revela imenso impacto pedagógico no combate ao racismo e na exigência de respeito à diversidade racial. Contudo, a diligente resposta dada pelos agentes públicos, que aplicaram devidamente a lei, não compõe a regra, mas a exceção – explicada tanto pelo perfil da vítima, como pelo espetáculo televisivo. Com o seu forte significado simbólico, o caso Grafite é capaz de traduzir, sobretudo, a urgência de enfrentar o legado discriminatório, que tem negado à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e liberdades mais fundamentais.

* Flávia Piovesan é professora doutora da PUC-SP nas disciplinas de Direito Constitucional e Direitos Humanos, professora de Direitos Humanos do Programa de Pós Graduação da PUC-SP e do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento na Universidade Pablo Olavide (Espanha), visiting fellow do Programa de Direitos Humanos da Harvard Law School (1995 e 2000), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do Estado de São Paulo.

 

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A esquecida dívida social

Por Márcio Pochmann* – 29/03/05

Embora sempre presente na retórica de políticos, especialistas e do povo em geral, a dívida social, estimada em R$ 7,2 bilhões, não recebe a mesma atenção que a dívida financeira pública. Esta, apesar de 10 vezes menor, conta no governo com equipe gestora, metas e cronogramas claros.

O célebre comentário de Tancredo Neves pronunciado ainda na primeira metade da década de 1980 sobre o fato de o Brasil não poder mais pagar a dívida pública com a fome do seu povo permanece – ainda hoje – atual. Naquela oportunidade, logo no início da transição democrática, diversos especialistas e instituições financeiras buscavam se colocar de acordo a respeito da metodologia de definição do tamanho da dívida pública, enquanto parcela do movimento social reivindicava a auditoria e moratória das dívidas públicas interna e externa.

Uma vez alcançado o consenso sobre o tamanho da dívida pública entre as autoridades governamentais, iniciou-se o longo calvário de reorganização do setor público para poder atender ao recorrente e crescente conjunto de interesses dos credores financeiros do Estado brasileiro. Com Sarney, por exemplo, foram dados os primeiro passos, por intermédio do fim da Conta Movimento no Banco do Brasil e da criação da Secretaria do Tesoura Nacional (STN) subordinada no Ministério da Fazenda.

Em síntese, houve aperto da torneira que viabilizava recurso público rápido e fácil ao sistema financeiro com o fim da Conta Movimento, enquanto a STN assumiu maior centralidade na coordenação da receita e do gasto do setor público. Dessa forma, a reorganização das finanças governamentais voltou-se ao atendimento da dívida pública.

Após marchas e contra-marchas, como a moratória técnica da dívida externa, em 1987, e o aprisionamento dos recursos aplicados no sistema financeiro, em 1990 com o Plano Collor, a musculatura do setor público terminou sendo novamente revigorada com o intuito de melhor atender aos credores da dívida pública. Já nos preparativos do Plano Real, em 1994, a equipe econômica em alta, introduziu a contenção sistemática do gasto social, por conta da desvinculação de parte das receitas direcionadas ao financiamento da saúde, assistência, previdência, educação e trabalho, bem como prolongou a criação do Orçamento da Seguridade Social definida pela Constituição de 1988.

Assim, os titulares da dívida pública passaram a ter mais e melhores garantias materiais de que não faltariam recursos públicos. Ademais, houve ainda a continuidade da drenagem das finanças públicas para os credores da dívida por meio da privatização do setor produtivo estatal, da elevação da carga tributária sobre a população mais pobre, da terceirização e do arrocho da remuneração dos funcionários e, ainda, da legislação que estabeleceu um freio ao maior gasto orçamentário, como a Lei Camata na despesa de pessoal e a Lei de Responsabilidade Fiscal na despesa sem cobertura fiscal.

Por fim, um novo impulso foi dado em relação à segurança de recursos públicos necessários ao atendimento das famílias ricas que colocam parte crescente de sua riqueza na ciranda financeira. A implementação das metas de inflação e de superávit fiscal indica inquestionavelmente o quanto a política macroeconômica encontra-se comprometida com a sustentação do ciclo da financeirização da riqueza no Brasil.

Em outras palavras, os governos constituíram coordenação na área econômica, com equipe gestora dos esforços de todas as áreas para atender às exigências do endividamento público, apresentando, inclusive, metas e cronogramas claros para não deixarem dúvidas a respeito da predisposição final de atender fielmente os compromissos financeiros firmados.

Em contrapartida, a dívida social, embora quase sempre presente na retórica de políticos, especialistas e do povo em geral, deixou de apresentar a mesma performance quando comparada com a dívida financeira pública. Ainda hoje não há metodologia oficial reconhecida para o dimensionamento da dívida social no Brasil.

Ao mesmo tempo em que se desconhece o seu tamanho, parece desconsiderar-se a necessária reorganização da gestão da área social, que tem permanecido sem instituição que lhe dê centralidade – em paralelo com a dívida pública que se expressa pela Secretaria do Tesouro Nacional. Sem explicitar coordenação e equipe voltada à matricialidade e à intersetorialidade das ações, a área social deixa de apresentar metas oficiais e cronogramas globais, com compromissos explicitados de recursos públicos e privados suficientes para saldar a dívida social existente.

Sobre isso, aliás, nem se fala, por exemplo, de uma Lei de Responsabilidade Social. Uma legislação desse tipo poderia, por exemplo, estimular o comprometimento de gestores públicos e de toda a sociedade com uma possível meta oficial de inclusão social.

No quinto livro da série Atlas da Exclusão Social publicada pela editora Cortez (Agenda não liberal da inclusão social no Brasil) localiza-se uma metodologia de dimensionamento da atual dívida social no Brasil, ao mesmo tempo em que apresenta um cronograma com metas de ações socioeconômicas fundamentais. De acordo com as estimativas de parte dos pesquisadores que organizaram o livro, o Brasil registrou, em 2004, uma dívida social de 7,2 trilhões de reais, ou seja, quase 10 vezes a atual dívida financeira pública.

Enquanto permanecer em moratória - não declarada - o pagamento da dívida social, tende a ficar em segundo tanto plano o necessário redesenho do atual padrão de gestão de políticas públicas como a relocalização de recursos adicionais para a área social. Não causa surpresa, por conta disso, que o Brasil corre o sério risco de chegar, em 2020, com situação socioeconômica não superior a verificada nos dias de hoje.

* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.

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Os assinantes pagam, Veja mente

Por José Arbex Jr. – 21/03/05

Em sua edição de 5 de março, a revista - ou melhor, panfleto da direita racista tupiniquim - volta a produzir injúrias, calúnias e difamações contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com a "reportagem" intitulada "Nós pagamos, eles invadem". O panfleto acusa o MST de desviar "milhões de reais" fornecidos pelo governo para implementar a reforma agrária. O dinheiro "desviado" seria utilizado para promover novas "invasões". Além disso, Veja publica depoimentos de supostos ex-integrantes do MST que denunciam a cobrança de taxas ilegais a todos os assentados por parte da direção nacional do movimento. Irados com tamanha injustiça, os ex-militantes queimam a bandeira do MST, produzindo um indisfarçado orgasmo nos autores da "reportagem", feita no assentamento Baixio do Boi, no município de S. José de Belmonte, sertão central de Pernambuco.

E a Veja mente de novo

Primeiro, vem a questão dos "dissidentes irados". No assentamento vivem 190 famílias, cerca de 800 pessoas. Destas, apenas 10 participaram do "protesto", liderado por um certo Francisco, ex-técnico agrícola dos assentados. Outros que acompanhavam o evento não tinham qualquer relação com o MST. O que a revista não conta, explica Jaime Amorim, da direção do movimento, é que há cerca de 6 meses o tal Francisco foi demitido pelo MST, por suspeitas de desvios de dinheiro do Pronaf e má conduta. Atualmente, o tal Francisco sofre processo do Banco do Nordeste, por desvio de dinheiro. Ou a Veja não sabia disso, e portanto é incompetente, ou sabia e ocultou a informação, e portanto é criminosa.

Depois, vem a acusação da suposta "cobrança ilegal de taxas". Essa é velha. A lebre foi levantada, no ano 2000, pelo suposto "jornalista" Josias de Souza, da Folha de S. Paulo, posteriormente obrigado a admitir ter feito a sua "reportagem" sob os auspícios do governo Fernando Henrique Cardoso, que chegou a ceder automóveis e orientação técnica para a produção de um trabalho realmente "independente" de jornalismo. Na época, o MST esclareceu exaustivamente que qualquer cooperativa, em qualquer parte do planeta Terra, cobra um taxa mínima de seus associados, como condição básica de subsistência.

Por fim, vem a acusação de "desvio de verba" para promover "invasões". Francamente, o assunto chega a ser tedioso e não merece sequer ser comentado. Os editores do panfletão acham estranho o governo ceder verbas a um movimento social que agrega 300 mil famílias de trabalhadores rurais em todo o país e que mantém escolas, atendimento de saúde, treinamento profissional, assistência técnica e outros serviços públicos. Só para mero efeito de comparação: em 2003, a Anca (acusada pela Veja de receber dinheiro público indevido) obteve do MEC R$ 3.424.608,00 para promover o seu programa de alfabetização de 35 mil sem-terra adultos, em acampamentos e assentamentos, alguns situados em áreas tão inóspitas que não são servidos por qualquer infra-estrutura estatal. Pois bem: no mesmo período, a entidade dirigida pela ex-primeira-dama Ruth Cardoso (Alfabetização Solidária) recebeu R$ 33.966.900,00 e o Sesi, R$ 27.680.400,00; ao Instituto Riomafrense do Bem Estar do Menor, entidade nível municipal do Paraná, foram destinados R$ 6.193.440,00.  Nada disso merece atenção dos honestos editores do panfletão.

Curiosamente, a revista - também repudiada pelo PT, a quem acusou sem provas de ter recebido verbas das Farc colombianas para promover a campanha eleitoral de 2002 - nada diz quanto aos recursos bem mais vultuosos endereçados pelo governo aos cofres da família Civita, a título de pagamento por anúncios publicitários e aquisição de assinaturas de publicações do Grupo Abril. Seria muito interessante promover uma CPI para investigar as relações entre os vários governos e os donos do Grupo Abril, e mais ainda investigar o destino que a família Civita dá ao botim.

Vejamente, eis tudo. De nada adiantou, ao que parece, a revista ter sido condenada por injúria, calúnia e difamação, por "reportagem" semelhante, publicada na edição de 10 de maio de 2000, intitulada "A tática da baderna". Na época, João Pedro Stedile entrou com processo no Fórum da Lapa, e ganhou em primeira instância. Apostando na morosidade da Justiça, a revista recorreu. O processo ainda tramita, mas moralmente a revista foi conduzida ao seu lugar: a lata de lixo da história. Os assinantes da revista, aliás, deveriam fazer um movimento para exigir de volta o seu dinheiro, por receberem notícias falsas e ainda por cima requentadas. Fica a sugestão: aproveitem como mote o lema "nós pagamos eles mentem".

José Arbex Jr. é editor da revista Caros Amigos e escreve também para o jornal Brasil de Fato. Colaborou Hamilton Octavio de Souza.

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Veja faz campanha contra a Reforma Agrária

Por Sérgio Domingues e Vito Giannotti* - 18/03/05

A edição da revista mais conservadora do País foi às bancas no dia 6 de março. O título da matéria é explícito: "Nós pagamos, eles invadem". Abaixo do título, uma charge de João Pedro Stedile ordenhando uma vaca verde-amarela sobre um balde com o símbolo do MST, cheio de militantes tomando o leite que cai das tetas do animal.

A reportagem de André Rizek diz que "O MST nunca recebeu tanto dinheiro do governo. E agora é investigado por suspeita de usá-lo para financiar invasões". Rizek alega que o MST viu secarem suas fontes de financiamento quando os doadores europeus voltaram sua atenção para o Leste Europeu nos anos 90. Além disso, a causa por que luta teria sofrido um esgotamento, já que nasceu apoiada no combate "aos – hoje praticamente inexistentes – latifúndios improdutivos". Esses dois fatores teriam provocado "um esvaziamento do movimento". E isso teria feito com que o MST fosse empurrado "para uma direção inédita: os braços do Estado".

O artigo da Veja, como sempre, mistura fatos com interpretações e, sobretudo, opiniões que refletem sua linha política e ideológica conservadora. É fato que o apoio internacional aos movimentos populares se deslocou, hoje, do Brasil para outras áreas do mundo. Mas quem disse que hoje as terras e latifúndios improdutivos são quase inexistentes? E, sobretudo, por que a Veja silencia que milhões de hectares de terra que ela, alegremente, chama de produtivas são terras devolutas, terras sem dono.

Quanto ao que a Veja define como uma queda do MST nos braços do Estado, essa é outra afirmação ideológica.

O MST exige, com centenas de ocupações, que o Estado cumpra seu papel de implementar a reforma agrária. O que o MST exige e em parca medida recebe do governo não é nem um milésimo do que o agronegócio recebe de mil formas do mesmo governo. As maneiras do chamado agro-business aumentar seus lucros são tantas: ferrovias feitas especialmente para escoar seus produtos, portos, isenções e incentivos, estoques regulatórios, apoios técnicos e toda a parafernália de artifícios para financiar o capital.

Para a Veja, isso é legítimo. Seu interesse é convencer seu milhão de assinantes que o MST é o vilão, o bandido e deve ser processado.

* Sérgio Domingues e Vito Giannotti são membros do Núcleo Piratininga de Comunicação.

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O que diz a PEC Paralela

Por Antônio Augusto de Queiroz* - 17/03/05

O substitutivo da Câmara à Proposta de Emenda à Constituição nº 227/2004, conhecida como PEC Paralela da Previdência, após aprovação em dois turnos pelos deputados, retorna ao Senado, onde tramitará sob o nº  77/2003. A PEC paralela foi concebida pelo senador Paulo Paim (PT/RS), negociada pelo senador Tião Viana (PT/AC), relator da Reforma da Previdência no Senado,  e apresentada pela então líder do PT no Senado, senadora Ideli Salvatti (SC), para amenizar os efeitos perversos da Reforma da Previdência sobre o funcionalismo. O Senado, que impôs como condição para votação da Reforma da Previdência a aprovação de uma PEC Paralela com regras de transição menos draconianas para os atuais servidores, deve votar a matéria rapidamente, no máximo em dois meses.

A PEC Paralela, em relação à Reforma da Previdência (E.C. 41), traz modificações importantes para os atuais servidores, especialmente no que diz respeito: i) à integralidade, ii) à paridade, iii) à  transição, iv) ao subteto, v) à contribuição de inativo, vi) à aposentadoria especial, vii) à contribuição da empresa para o INSS, e viii) à inclusão previdenciária.

Integralidade – Garante aposentadoria integral e paridade plena ao servidor que, tendo ingressado no serviço público até 31/12/2003, preencher os requisitos da Emenda Constitucional 41 (35 ou 30 anos de contribuição, se homem ou mulher, 60 ou 55 de idade, 20 anos de serviço público, sendo dez na carreira e cinco no cargo). Revoga o § único do art. 6º da E.C. 41.

Paridade geral – Assegura paridade plena a todos os servidores que, tendo ingressado no serviço público até 31/12/2003, preencherem as exigências para aposentadoria integral (item anterior). Dizendo de outro modo, estende a paridade plena do art. 7º da E.C. 41 aos servidores que se aposentarem com base no art. 6º da própria E.C. 41.

Paridade das pensões – Fica assegura a aplicação da regra de paridade plena, constante do art. 7º da E.C. 41, de 2003, às revisões de pensões derivadas de proventos de servidores falecidos cujas aposentadorias tenham sido concedidas com base na regra de transição abaixo.

Regra de transição geral - Possibilita ao servidor que ingressou no serviço público até 16 de dezembro de 1998 se aposentar integralmente e com paridade plena antes da idade mínima exigida na Emenda Constitucional 41, desde que tenha pelo menos 25 anos de serviço público, 15 na carreira, dez no cargo e comprove tempo de contribuição acima do exigido, no caso de 30 anos para a mulher e de 35 para o homem. Para cada ano que o servidor exceder no tempo de contribuição, ele poderá reduzir ou abater um ano na idade mínima. É a conhecida regra 95 para os homens ou fórmula 85 para as mulheres, que poderá ser alcançada com a soma da idade com o tempo de contribuição. Exemplo: homem 59/36, 58/37, 57/38; 56/39, 55/40 etc.

Professores na regra de transição – A regra de transição também se aplica aos professores e professoras da educação infantil e do ensino fundamental e médio. A idade mínima do professor, 55 anos, e da professora, 50 anos, poderá ser reduzida em um ano sempre que for comprovado um ano de contribuição além do mínimo exigido (30 para o homem e 25 para a mulher), desde que o professor ou professora comprove 20 anos de serviço público efetivos exercidos exclusivamente nas funções de magistério na educação infantil ou fundamental ou médio.

Teto nacional - O teto nacional de remuneração e proventos no serviço público, que exclui apenas as parcelas indenizatórias previstas em lei, será equivalente ao subsídio de ministro do Supremo Tribunal Federal, correspondente, em valores de dezembro de 2004, a R$ 19.170,00, podendo chegar a R$ 21.500,00 em 2005 e R$ 24.500,00 em 2006, se aprovado o projeto do Supremo Tribunal Federal que define o novo teto nacional.

Subteto 1 nos Estados – O subsídio de governador, que é fixado como maior remuneração paga ao servidor estadual, será de, no mínimo, 50% do maior salário de Ministro do Supremo Tribunal Federal.  Possibilita, ainda, que Emenda à Constituição Estadual possa fixar subteto estadual em valor igual ao subsídio de desembargador, que equivale a 90,25% do subsídio de ministro do STF.

Subteto 2 nos Estados – As carreiras de procuradores, advogados, defensores,   membros do Ministério Público e agentes fiscais tributários ficarão vinculadas ao subteto de desembargador, que corresponde a 90,25% do subsídio de Ministro do STF.

Subteto nos Municípios - A PEC Paralela cuida apenas do subteto nos Estados e no Distrito Federal, mantendo inalterado o texto da Emenda 41 em relação ao subteto Municipal. E, de acordo com a Emenda Constitucional 41, com exceção do Procurador Municipal, a maior remuneração percebida por servidor municipal, cumulativa ou não, não poderá ser superior ao subsídio do Prefeito, que por sua vez não poderá exceder ao subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Contribuição de Inativo -  O aposentado ou pensionista do serviço público que for portador de doença incapacitante, nos termos de lei, ficará isento de contribuição para a previdência até o dobro do teto do INSS, algo equivalente, em valores de dezembro de 2004, a R$ 5.017,00. O aposentado ou pensionista, em gozo de benefício na data de promulgação da PEC Paralela, que seja portador de doença incapacitante também terá isenção em valor correspondente ao dobro do teto de INSS.

Aposentadorias Especiais - Assegura aposentadoria especial, nos termos de lei complementar, para os portadores de deficiência, para os servidores que exercem atividade de risco (policiais) e para os servidores cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem à saúde ou à integridade física.

Contribuição da Empresa para o INSS – Modifica o § 9º do art. 195 da Constituição Federal para permitir que a contribuição do empregador para a Previdência Social (INSS) possa ter base de cálculo e alíquota diferenciada em razão não apenas da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra, mas também do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho.

Inclusão Previdenciária – Lei disporá sobre sistema especial de inclusão previdenciária, com alíquotas e carências inferiores às vigentes para os segurados em geral, destinado a atender trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda própria, desde que pertencentes a famílias de baixa renda, que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico, garantido-lhes o acesso a benefício de valor igual a um salário mínimo.

Vigência da PEC Paralela – Emenda dos deputados Carlos Mota e Drª Clair, aprovada na Câmara, determina que a vigência da PEC Paralela será retroativa a 31 de dezembro de 2003, data da promulgação da E.C. 41, da Reforma da Previdência, beneficiando todos os servidores que ingressaram no serviço público após a reforma da Previdência do Governo Lula.

* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e Diretor de Documentação do DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. Também é assessor parlamentar da Fenajufe.

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Godard e a Globo pornográfica

Por Glória Reis* - 03/03/05

Alguns leitores da minha geração devem se lembrar da polêmica na imprensa, nos anos 80, quando o filme "Je vous salue, Marie", de Jean-Luc Godard, foi proibido no Brasil, sob a alegação de que era uma ofensa à religião católica.

Durante dias e dias foi assunto na imprensa. Naquela época se discutia cultura na mídia. Não é essa mesmice de hoje, em que só se fala de politicagem, guerra, Bush, desfile de moda e casamento de jogador de futebol.

Os leitores acompanhavam o tema, escreviam cartas aos jornais e os colunistas tratavam do tema ardorosamente.

Numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo, perguntaram a Godard o que achava da proibição do seu filme no Brasil e sua resposta foi inusitada:

- Não estranho a censura ao meu filme e sim por que não censuram a TV Globo porque, ela sim, é pornográfica.

Quando li a entrevista, o que mais me surpreendeu foi o fato de um francês, tão distante do Brasil, ter essa informação dos malefícios de um canal de televisão em outro país. E, principalmente, tratando-se de um fato do qual nem os próprios brasileiros se dão conta.
Hoje, ao assistir alguns episódios da novela Senhora do Destino, fico me lembrando de Godard e do seu sábio conselho, que, infelizmente, nunca foi seguido em nosso país.
Reina uma ditadura do "vale-tudo" nos meios de comunicação.

Não há regras, que é a base da democracia. Regras, respeito, ética, principalmente aos que "fazem a cabeça do povo". E, como sabemos, a Globo seria a primeira a dar o exemplo. Mas ao contrário, ninguém ousa mexer com a deusa platinada. E por isso, ela abusa. Deita e rola. É como uma criança mimada que sabe o quanto tem o poder nas mãos, o quanto todos a temem.

A "liberdade de expressão" é a nossa vaca sagrada. Como na Índia, pode passear à vontade pelas ruas, perturbar o trânsito e a vida das pessoas, mas não se pode tocar nela, mesmo que, de sagrada e liberdade não tenha nada.

A Globo cada vez mais se excede, tirando proveito do seu posto de monopólio, totalmente alheia ao "tsunami" que provoca na cultura do nosso povo. Perdeu a noção de limites, numa ostensiva demonstração daquilo que José Saramago disse: "acabaremos por cair num organismo autoritário dissimulado sob os mais belos parâmentos da democracia."
Certa vez li uma frase, não me lembro de quem: "fascismo não é só impedir de ver, é também obrigar a ver". Estamos, então, sob o fascismo da Globo. Ela nos obriga a ver. Não me venham com esse clichê de que se pode mudar de canal. É mais uma forma elitista de encarar a questão. Muda de canal quem tem opção, uma delas a tv paga. Não se trata do que eu vejo, do que expectadores esclarecidos vêem, mas sim do que é oferecido ao povo sem bula, sem apontar as contra-indicações que, no caso da Globo, podem levar este país a um efeito mortal dos nossos valores culturais, morais e éticos.

Como todo engano um dia chega ao fim, só nos cabe detectar o calcanhar de Aquiles que desencadeará o fim do abuso. Como no episódio de Godard, só lá fora é que vão provocar um exame de consciência na Globo pornográfica.

A censura virá de outros países, talvez em forma financeira - a única a que ela é sensível - não comprando mais suas produções abusadas. Aí, sim, ela vai se perguntar: "Onde foi que errei? ". Soube que a mini-série "Os Maias" foi um fracasso em Portugal, entre outras razões, por terem alterado a bel prazer o maravilhoso enredo de Eça de Queiroz. Aqui no Brasil, os meios de comunicação podem tudo, não há mecanismos de defesa ao alcance da população.

Acredito que chegaremos a um ponto de exaustão. Mas para o povo, já será tarde demais. Gerações já terão proliferado sob o efeito das novelas tendenciosas, pornográficas e violentas, da idiotia dos big brothers, do famigerado Casseta e Planeta e tudo o mais que se escancara, sem nenhum cuidado com a responsabilidade social, marca imprescindível de uma empresa que recebe concessão do governo para atuar junto à população.
Hoje se brada tanto em limites na educação de nossas crianças e adolescentes. Por que não limite aos adultos? Por que não aos meios de comunicação? Por que não à Globo?

* Glória Reis é professora, autora do livro "Escola, instituição da Tortura" e colaboradora do site Usina de Letras.

 

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A cultura e a comunicação sob a tirania do mercado

Por Márcia Cristina Pimentel * - 24/02/05

Os produtos jornalísticos relacionados aos temas da subjetividade e da vida privada dos indivíduos estão cada vez mais em pauta. Em especial quando o foco recai sobre aqueles que, através de estratégias de comunicação, se transformaram nas ditas "celebridades". Esta tendência à mistura de notícia com entretenimento, assessoria de comunicação com jornalismo, e que acompanha as regras do mercado de consumo, tem se revelado como uma perigosa mordaça ao mundo ético e à diversidade. Tal constatação nos atenta, ainda, para o risco de podermos estar caminhando para uma ditadura estética, expressiva e comunicacional.

Nessa segunda-feira (21/2), embora o país estivesse sofrendo a rebordosa da morte da irmã Dorothy e da eleição de Severino para a câmara federal, a primeira página do jornal carioca 'O Dia' estampava manchete, de meia página, que tratava de mais um capítulo do reality folhetim 'O casamento', protagonizado pelo ator-personagem Ronaldinho.

A grande manchete era só fuxico. Envolvia revelações da última 'ex' do protagonista, além de outras considerações sobre a 'atual', feitas pela modelo que representou o papel de 'a barrada no baile'. A tendência à construção de pautas voltadas à subjetividade ao estilo folhetinesco, contudo, não pode ser creditada apenas ao universo popularesco. A revista 'Você S/A' está aí para mostrar que empresários e altos executivos também querem se transformar em personagens do mundo midiático, a fórmula contemporânea de promoção pessoal mais eficaz.

Toda essa exposição da vida privada e do mundo subjetivo vem sendo impressionantemente acelerada e aprofundada pelo pensamento neoliberal. Cada vez mais, ela parece contaminar com a estética do folhetim as representações - e não só as de massa - que vêm sendo submetidas à lógica mercadológica, muito embora o atual estágio de organização da sociedade e do mundo não prescinda das informações objetivas. Ainda pelos estatutos do neoliberalismo, muito mais vale a projeção pessoal e sua transformação em personagem folhetinesco do que a tentativa de mudar a realidade. Esta é melhor ficar como está.

A modelo que fez o papel de 'a barrada no baile' é mais uma a atestar esta verdade. Apenas dois dias após o enlace matrimonial espetacular de Ronaldinho, o sítio virtual 'Uol' registrava que seu cachê já tinha aumentado em 900%. Isto porque ela foi o pivô da cena que mais rendeu 'babados' e audiência, dentre todas as demais cenas do espetáculo 'O casamento'.

Para garantir a sobrevivência da lei e dos seus paradigmas de representação, paparazzi e jornalistas de plantão se postam dia e noite na sombra das personagens 'reais', a fim de continuar a trama dos seus diversos reality folhetins. É necessário mostrar que a ascensão social é possível, desde que o indivíduo aceite a lógica do fetiche, pois ele é uma das maneiras mais eficientes de agregar valor a qualquer mercadoria, inclusive a humana. Pois o que me parece acontecer é que essa lógica educa para a questão de que, hoje, não basta apenas alienar a força de trabalho, mas a si próprio.

Os autores da nova tendência folhetinesca, na busca de informações sobre suas personagens-fetiche, arriscam-se, inclusive, a levar socos de namorados raivosos, o que os leva a evocar a liberdade de imprensa, com o irrestrito apoio do veículo para o qual trabalha. Inclusive o das entidades de classe, sempre a defenderem o direito ao trabalho, ainda que o código de ética da categoria seja claro quanto à conduta de "respeitar o direito de privacidade do cidadão". A revista 'Contigo' tem, inclusive, chamado esta busca pelo desvelamento do mundo privado das "celebridades" de "jornalismo investigativo". Jornalistas conhecidos do grande público também dizem que esse tipo de jornalismo é "muito natural", pois é isso "o que o povo quer", é uma "questão de mercado".

A crise ética

O jornalista e professor Bernardo Kucinski, em seus 'Ensaios sobre o colapso da razão ética', observa a atual tendência de não-aceitação de um código de ética pela categoria jornalística e veículos de comunicação por ele contrariar as regras mercadológicas e os valores do individualismo, tão marcantes na contemporaneidade. Quando se trata da mídia gerar matérias com informações objetivas, há ainda de se lembrar outra questão levantada por Kuncinski; a de que a corrupção se tornou numa "prática sedutora na indústria da comunicação" pelo fato dela combinar "o poder de influenciar politicamente a opinião pública com o poder econômico".

Ao final de tudo, o que nos parece efetivamente acontecer, é que a hegemonia do pensamento neoliberal não tem permitido, na práxis, outras manifestações da representação que não sejam as suas, sob a pena de se ser expurgado e massacrado pelo mercado. Isto vale tanto para veículos como para profissionais. Na verdade, a regra da submissão ao mercado, não submete apenas o econômico em função da necessidade de sobrevivência. Submete a própria existência. Tudo e todos ficam condenados à lógica do seu pensamento mercadológico, esvaziando e anulando, inclusive, as individualidades, as expressões e as outras formas de representação.

Da mesma maneira que o jornalismo crítico, o teatro também se vê cada vez mais inserido numa camisa de forças, em função da sua fusão com o entretenimento e consumo, esvaziando, de forma preocupante, a essência desta arte. Tal como vem acontecendo com o jornalista, o ator também vem abandonando todos os parâmetros éticos e utópicos, inerentes a qualquer projeto estético e poético, por contingência da sobrevivência e das leis do mercado.

Luiz Carlos Moreira, um dos integrantes do movimento paulista 'Arte contra a Barbárie', em um de seus escritos, mostra bem o que vem acontecendo com o ator de teatro. Este, agora, tem que saber dançar, cantar, sapatear, rodopiar, assoviar, fazer drama, tragédia, comédia, enfim, tem que traçar o que vier pela frente para garantir o pagamento do aluguel no mês seguinte. Para sobreviver, ele hoje pode se inserir "num pacote que vem da Broadway, amanhã numa peça que prega a revolução comunista", e depois de amanhã "num comercial do banco Itaú". É um 'artista' sem nenhuma arte, pois não tem projeto estético. Ele é apenas um profissional.

No abandono da essência de seu ofício, os atores, tal como os jornalistas, parecem se conformar à função do técnico. Transformaram-se naqueles profissionais que sabem reproduzir o projeto de qualquer engenharia cultural, de comunicação ou entretenimento, estejam tais projetos coadunados com a sua visão de mundo, ou não. Os sujeitos do mercado e aqueles cooptam com suas proposições, parecem, assim, esvaziar, deteriorar, destruir todos os sonhos e utopias que não se vinculem ao consumo, à casa própria, à sobrevivência. Ao impor a sua lógica, impõe junto uma ditadura expressiva, estética e representacional, ou melhor, transforma o campo da cultura e da comunicação em mera reprodução de suas forças. E os indivíduos em meros instrumentos dessa reprodução.

* Márcia Cristina Pimentel é jornalista, atriz e escreve para o site La Insígnia.

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Como não cometer os mesmo e velhos erros?

Por Márcio Pochmann * – 21/02/05

O novo governo do Uruguai nem tomou posse ainda, mas já produziu matéria de fazer inveja a outros governantes do continente latino-americano. Desde a sua campanha eleitoral, em 2004, o então candidato Tabaré Vasquéz notabilizou-se por buscar a aglutinação de diferentes segmentos sociais em torno da construção de uma agenda voltada para o desenvolvimento social e econômico do Uruguai.

Para isso, assumiu como ponta de lança de um novo horizonte nacional, a consideração e recomposição dos segmentos sociais mais diretamente afetados pelo vendaval do neoliberalismo. Imediatamente após a eleição, já em plena etapa de formação da equipe de governo, o presidente eleito inovou novamente ao antecipar a agenda do desenvolvimento, como forma de aprofundar o diagnóstico e oferecer alternativas viáveis de execução com distintos integrantes da sociedade.

Muitas oficinas de discussão têm sido realizadas nas mais diferentes áreas. Nos dias 31 de janeiro e 1 de fevereiro do corrente ano, por exemplo, ocorreu uma dessas oficinas voltadas para o redimensionamento do projeto de desenvolvimento nacional, a partir das análises das experiências latino-americanas de adoção de políticas de emergência social.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (ONU), convocado pela senadora e também indicada para o novo Ministério do Desenvolvimento Social Marina Arismendi, organizou um excelente encontro internacional com antigos e atuais gestores de programas sociais de emergência adotados em países como Argentina, Brasil, Chile, Cuba e México. Durante dois dias, diversos membros da equipe do novo governo do Uruguai (ministros, secretários executivos e técnicos), que somente tomam posse no dia 1 de março próximo, tiveram a oportunidade de fazer uma verdadeira sabatina a respeito da estratégia, execução e conteúdo dos diferentes programas de emergência social adotados nos países latino-americanos. Diante da diversidade da materialidade das políticas sociais, em que uma parte importante dos países latino-americanos segue a norma neoliberal das agências multilaterais de complementar renda, há que se separar o joio do trigo. Como se sabe, a década de 1990 foi, sobretudo, o período das reformas neoliberais, cujos resultados em termos sociais, especialmente no emprego foi uma catástrofe, mesmo em países com indicadores positivos de crescimento econômico.

Com a insustentabilidade dos regimes democráticos frente às políticas de liberalização comercial, produtiva, financeira, tecnológica e laboral, que levam ao aprofundamento da polarização social entre rico e pobre, com forte enxugamento das classes médias, ganhou ênfase a formação de uma nova aliança política entre os segmentos muito ricos e os muitos pobres. Na maior parte das vezes, a nova maioria vencedora tratou de compatibilizar programas de racionalização de gastos nas políticas universais como educação, saúde, habitação e transporte, geralmente defendidas pelos segmentos organizados da sociedade, como forma de viabilizar tanto a renda mínima a ganhadores do circuito da financeirização da riqueza, por intermédio das transferências financeiras, com altas taxas de juros, como a renda mínima a segmentos muito pauperizados. Sem emprego e perspectiva de mobilidade social, salvo aquela oferecida pela ilegalidade da prostituição, da criminalidade, tráfico humano e de drogas, certas agências multilaterais apóiam programas de complementação condicionada de renda.

De acordo com os participantes da oficina realizada no Uruguai, os programas de transferência de renda variam entre 1% (México) a 0,3% (Brasil) do Produto Interno Bruto. Com distintas ações e funções há detalhes importantes a serem feitas entre os programas do México e Chile e os da Argentina e Brasil, por exemplo. No primeiro grupo de países, os programas encontram-se mais próximos da ideologia neoliberal da focalização de recursos, enquanto no segundo, os programas estão um pouco mais distantes disso.

Diferenças mesmo em termos de objetivos voltados para a emancipação social e política, em que a política econômica transforma-se em parte integrante das ações integradas e matriciais de operacionalidade, foram localizadas nos programas de Cuba e da Prefeitura de São Paulo (2001 a 2004). Em síntese se tratam de ações governamentais que envolvem a inversão de prioridade, com o gasto público a serviço do avanço da infra-estrutura física no território em que se concentra o conjunto da população mais pobre. Por não se referirem a programas direcionados de pobre para pobre - que se distanciam da inclusão social -, os resultados apresentados em Cuba e no município de São Paulo convergiram com a perspectiva efetiva de enfrentamento da exclusão social em novas bases. Nesse mesmo sentido parece seguir as ações do governo de Chávez na Venezuela, com amplas programas matriciais nas áreas da saúde, educação, infra-estrutura, emprego, entre outras. Bem, mas isso é algo para ser tratado em outra oportunidade.

Em resumo, as informações aqui apresentadas apenas indicam a correta preocupação do novo governo de Uruguai em não procurar cometer os mesmo e velhos erros, que tradicionalmente acompanham as gestões públicas na área social, especialmente aquelas oriundas da linha política de centro-esquerda. O governo Lula, por exemplo, parece ter aprendido pouco sobre isso, uma vez que deixou em segundo plano o aprendizado acumulado desde 1982 nas experiências municipais e estaduais exitosas na área social. Ao contrário da área econômica, que tem equipe e coordenação, com metas e cronogramas, a área social segue o jogo incerto e errôneo da ausência de coordenação do conjunto da área social. Sem diagnóstico comum, opera, na maioria das vezes, sem metas e cronogramas, em meio à lógica da competição interburocrática, em que a soma das partes não resulta necessariamente num todo maior.

Conforme o governo uruguaio, o novo ministério do desenvolvimento social não representa mais um ministério, mas sim a institucionalidade governamental necessária para a integração e matricialidade dos programas de emergência social no conjunto do governo. Para atender aos segmentos sociais desfalecidos pela política neoliberal, há uma emergência da ação pública que, ao reconhecer a sua existência, buscará oferecer o atendimento cidadão de curto e longo prazos. Este primeiro momento da política pública deve contemplar imediatamente a semente da emancipação social, política e econômica. Ainda conforme a futura ministra do Desenvolvimento Social, os excluídos devem ser também os protagonistas das políticas sociais, não meros repositórios passivos, quando não clientelas do dependentismo político e paternalista, a que têm sido continuamente submetidos por políticas sociais estigmatizantes, conduzidas pelos princípios individualistas do neoliberalismo predominante na América Latina.

É nesse contexto que o novo governo do Uruguai poderá deixar de cometer velhos erros. Ao longo deste ano, o acompanhamento de sua performance dirá o quanto isso deixou de se uma retórica para se transformar em realidade efetiva.

* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.

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Eleições sobre cadáveres

Por Augusto Zamora R* - 14/02/05

Relevantes meios de comunicação e políticos não duvidaram em qualificar o que aconteceu no passado dia 30 no Iraque como "as primeiras eleições democráticas" da sua história. A afirmação é um alarde de cinismo ou de cegueira porque ninguém - que acredite numa verdadeira democracia - pode aceitar, como tal, a farsa eleitoral organizada pelos EUA. Não o pode chamar, sem deformar a tal ponto os fundamentos da democracia que, então, pode chamar-se isso a qualquer arremedo de consulta popular, onde o que importa não é o país, mas o poder.

O Iraque, há que recordá-lo, é um país ocupado por 200 mil soldados estrangeiros e em guerra. Um Estado soberano invadido em 2003, em violação das leis mais fundamentais do Direito Internacional e onde, diariamente, são assassinados, torturados e vilipendiados centenas de cidadãos, sem que haja lei ou autoridade que zele pelos seus direitos. Um país que vê destruídas cidades, povoações e bairros pelas forças invasoras, no meio do silêncio cúmplice de tantos governos, mais preocupados em agradar à potência ocupante que em deter a destruição do Iraque e os crimes que ali se cometem diariamente.

As eleições, além disso, estavam infestadas de arbitrariedades que, não fossem os Estados Unidos o organizador – ou se o seu promotor tivesse sido um país adverso ao Ocidente – a desclassificação das mesmas teria sido generalizada. Realizaram-se, em primeiro lugar, em total ausência de liberdade, pois nenhuma pessoa honesta pode acreditar que um país agredido e ocupado pode exercer livremente o seu direito à autodeterminação. As eleições em Timor Leste realizaram-se em 2001 sob a supervisão da ONU, dois anos depois de o exército indonésio abandonar o país. Nunca ninguém pensou em realizar as eleições enquanto Timor permanecia debaixo da ocupação de tropas estrangeiras.

Em segundo lugar, não existia um recenseamento fiável, nem se tinham, minimamente, definido os votantes. Esta carência essencial permitirá aos EUA adulterar os níveis de participação e dirigir os votos para os seus candidatos protegidos, de forma que ganhe quem menos o odiar. Também não havia uma autoridade eleitoral, legítima e independente, que zelasse pela lisura do escrutínio, nem que garantisse as liberdades eleitorais mínimas, como exige o jogo democrático. Os partidos que se opõem à ocupação foram ilegalizados ou integraram-se na resistência. Desde a convocação das eleições, optaram por retirar-se 53 partidos dos 84 que se apresentaram inicialmente, pela precariedade das mesmas e ausência de garantias. A farsa era tão absurda que até podiam ter votado 150 mil israelenses de origem iraquiana.

Na conferência de Sharm el Sheij, no Egito, a França apresentou uma proposta, não aceita, com três condições para superar o desastre no Iraque: a participação de todas as forças iraquianas, incluída a resistência, em qualquer proposta de solução; passar o controle do Iraque às Nações Unidas e fixar uma data de retirada das tropas estrangeiras. A recusa desta proposta revela a intenção de manter, sine die, a ocupação do Iraque, o que é o mesmo que dizer a de prolongar a guerra e a destruição e, naturalmente, a de manter o país dominado. Não se gastaram 300 mil milhões de dólares para devolver o Iraque aos iraquianos.

Dar por boas eleições realizadas em tais condições não só aumentará a confrontação no Iraque como implicará legitimar as guerras de agressão e validar os crimes internacionais. Deitaram por terra não só a Carta das Nações Unidas, como também o Tribunal Penal Internacional, pois carecerá de sentido defender uma ordem jurídica mundial e um tribunal internacional quando basta uma farsa eleitoral para limpar os crimes mais abomináveis.

Os EUA, que inventaram a democracia das bananas no Caribe, tentam impor no Iraque uma democracia de cadáveres. Invade o país, coloca um governo títere, mata, encarcera e tortura os opositores e convoca eleições sem garantias, nas quais apenas participam os seus. Com o arremedo eleitoral, a ocupação e a guerra transformam-se em politicamente corretas e Bush poderá proclamar, sobre um país devastado, que os Estados Unidos cumpriram a sua missão civilizadora. O modelo não é novo. Na América Latina foi utilizado ao longo de décadas. E ainda se estão a contar os cadáveres.

* Augusto Zamora R. é professor de Direito Internacional Público e Relações Internacionais na Universidade Autônoma de Madrid.

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Reforma Política, tópicos centrais

Por Antônio Augusto de Queiroz * - 13/02/05

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Reinventando a esquerda em Porto Alegre

Por Francisco Teixeira * – 03/02/05

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Fórum Social na Venezuela e Chávez já despertam oposição

Por Marco A. Weissheimer* - 03/02/05

Porto Alegre - Encerrada a quinta edição do Fórum Social Mundial, a passagem do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, começa a ser transformada em motivo de polêmica. O apoio entusiasmado que Chávez recebeu em Porto Alegre e a decisão do Conselho Hemisférico das Américas de realizar o fórum continental, em 2006, em Caracas, despertaram reações entre integrantes do Conselho Internacional do FSM e na mídia da capital gaúcha. Entre os incomodados do CI estão Oded Grajew e Francisco Whitaker, que não mostraram muita simpatia pela idéia. Em declarações ao jornal Zero Hora, Grajew disse desconhecer a proposta de levar o FSM para Caracas: "Podem fazer um Fórum na Venezuela, mas se não passar pelo Conselho Internacional não é um Fórum Mundial", comentou. Na mesma linha, Whitaker acrescentou que "nada impede que apareçam outras alternativas".

Whitaker chegou a fazer um comentário irônico sobre as declarações do diretor do Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais (Ibase), Cândido Grzybowski, que, durante a conferência de Chávez no domingo, anunciou que o Fórum Social das Américas seria realizado mesmo na Venezuela. Segundo ZH, Whitaker insinuou que Cândido se emocionou e falou demais. Essa briga pela imprensa deve ganhar contornos mais nítidos na próxima reunião do Conselho Internacional do FSM, que será realizada entre os dias 30 de março e 1° de abril, em Amsterdã, Holanda. O CI já decidiu que a edição de 2006 do FSM será regionalizada, sendo realizada simultaneamente na Ásia, na África e nas Américas. Também está definido que o Fórum de 2007 irá para a África. O Comitê Africano do FSM já elegeu Marrocos como seu candidato para sediar o evento.

A proposta de Chávez de que o Fórum Social Mundial deve ter uma agenda política mais ofensiva não agrada muito a Grajew e Whitaker, que temem que o líder venezuelano acabe se tornando uma liderança importante entre os participantes do processo FSM, o que, na prática, já começou a acontecer em Porto Alegre. Atenta à proposta de uma agenda política ofensiva, defendida por Chávez, a RBS, principal grupo de mídia do Sul do país, iniciou um ataque à idéia. Esse ataque veio a partir de dois flancos que tentam, de forma articulada, desconstituir a figura de Chávez. O primeiro diz respeito às propostas de Chávez (ao discurso antiimperialista feito por ele no Gigantinho); o segundo concentra-se no tamanho da comitiva que o presidente venezuelano levou a Porto Alegre. Os dois temas foram temas de um editorial e de um comentário na televisão nesta terça-feira (1°).

Chávez está na contramão do mundo desenvolvido, diz ZH
Em um editorial intitulado "O norte de Chávez", Zero Hora comenta, com preocupação, a passagem do venezuelano pelo FSM, dizendo que ele está "na contramão do mundo desenvolvido e tem "identidade com experiências estatizantes fracassadas do passado". O editorial identifica assim a agenda proposta por Chávez: "nacionalismo exacerbado, repúdio intransigente à privatização de serviços públicos, onipresença do Estado na vida dos cidadãos e controle dos meios de comunicação". E lembra a tentativa de golpe que Chávez liderou contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em 1998, e as intervenções na economia que geraram "o descontentamento das elites empresariais venezuelanas". Reconhecendo que Chávez desbancou Lula da condição de "ídolo das esquerdas" no FSM, o texto defende que o brasileiro é uma liderança mais sensata e confiável.

Além das acusações de autoritarismo e anacronismo, o jornal da RBS levanta outra pauta para bater em Chávez: a comitiva de mais de 400 pessoas que o líder venezuelano levou a Porto Alegre. Em uma nota intitulada "Excessos presidenciais", a colunista política Rosane de Oliveira comenta: "o tamanho da comitiva, a obsessão com a segurança e as demonstrações de poder causaram espécie em quem cruzou com Chávez sem ser na condição de admirador". Na RBS TV, o comentarista Lasier Martins foi mais direto dizendo não ser possível que o Fórum Social Mundial vá para um país cujo presidente viaja com uma comitiva deste tamanho. Afirmando que a Venezuela "continua sendo um país dividido entre apoiadores e opositores do presidente, permanentemente à beira da instabilidade e da luta de classes", o editorial de ZH resume do seguinte modo o desconforto da RBS com Chávez: "será este o rumo que os povos latino-americanos almejam?".

As idéias incômodas de Chávez
A ofensividade política do discurso feito por Chávez em Porto Alegre e a grande receptividade que teve entre os participantes do FSM 2005 ajudam a entender essa reação: O líder venezuelano assumiu-se como um revolucionário, defensor do socialismo com democracia e inimigo do imperialismo norte- americano. Algumas passagens da conferência de Chávez no Gigantinho falam por si. "Há poderosos do mundo, controlando privadamente países inteiros. Aí está a raiz da fome e da violência, Nós somos companheiros dessa luta, iniciada no Fórum Social Mundial". Ou ainda: "Sou um homem comprometido com um mundo melhor e possível, sou um militante revolucionário. Não há outro caminho que não a revolução". E sobre a luta dos sem-terra no Brasil: "o MST tem sido um exemplo para todos os trabalhadores deste continente".

As referências apontadas por Chávez para dizer a que linhagem de políticos pertence devem ter arrepiado o cabelo de muita gente. "Sim, amigo Ramonet, posso ser um dirigente de um novo tipo. Mas me apóio em dirigentes de velho tipo. Como Cristo, que foi o maior líder antiimperialista da História. Velho tipo também como Bolívar. Como Che Guevara, como o general Torrrijos, no Panamá, ou Velasco Alvarado, no Peru. Como Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. E como aquele barbudo, de Cuba. De velhos tipos e "tipas", como aquela que libertou o Libertador, a mulher por quem Simon Bolívar se apaixonou perdidamente, Manuela Saenz, que deixou seu marido. 'Me vou com este homem, me vou com o furacão', disse ela na ocasião". O furacão Chávez passou pelo Fórum Social deixando um rastro de entusiasmo, admiradores e adversários.

* Marco A. Weissheimer, jornalista e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), é correspondente da Agência Carta Maior em Porto Alegre.

 

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O fórum concreto e o fórum abstrato

Por Luis Fernando Veríssimo - 27/01/05

O Fórum Social Mundial de Porto Alegre começou como uma paródia birrenta da reunião dos ricos e poderosos em Davos. Uma malcriação, uma inconseqüência de crianças. Pelo menos foi assim que a nossa grande imprensa o viu, no início. Lembro do próprio ombudsman da Folha de S. Paulo estranhando o desdém com que o jornal tratava o Fórum, apesar das questões e dos nomes importantes trazidos a Porto Alegre já nas suas primeiras edições. O pouco espaço dado ao evento na imprensa nacional se concentrava no folclórico e no espetaculoso - enfim, nas criancices. A repercussão internacional do Fórum e a sua própria expansão de ano para ano, e a crescente evidência de que a saúde e a sanidade do planeta dependem de se encontrar alternativas para o conchavo de Davos que certamente não sairão de Davos, acabaram aos poucos com o desprezo da grande mídia. Que continua neoliberal de coração, mas, ultimamente, disposta a examinar opções. Uma extensa cobertura jornalística do atual Fórum começou antes mesmo do Fórum. Os maiores jornais nacionais estão dedicando páginas inteiras ao Fórum, diariamente. Inclusive a Folha. Nunca "inconseqüentes" tiveram tanta atenção.

Mas persiste a idéia de que em Davos se reúne gente grande e aqui menores chorões. Lá pessoas sérias tratando da realidade do mundo, aqui idealistas ingênuos e bagunceiros atrás de utopias ultrapassadas ou do caos. Lá questões concretas, aqui abstrações sortidas levando a nada. Mas sabe qual vai ser o assunto dominante nos escaninhos de Davos, mesmo que não conste dos debates oficiais? O déficit americano agravado pela guerra e o efeito arrasador do seu financiamento sobre as economias e o equilíbrio cambial de todo o mundo. Ou sobre o futuro imediato de um capitalismo refém da mais etérea abstração de todas, a do custo arbitrário de um dinheiro que nunca desce à terra. Enquant o isto, em Porto Alegre se estará discutindo, entre algumas criancices, o uso do chão, a boa manutenção do planeta, a preservação da água e a justa distribuição do pão. E a realidade mais concreta de todas: a vida humana, como protegê-la e como dignificá-la. Porto Alegre, dez a zero.

* Luis Fernando Veríssimo é jornalista, escritor e cronista. Escreve artigos em vários jornais do país. Este artigo foi publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 27 de janeiro de 2005.

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JOANAS – Peça baseada em “Gota d’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, marca estreia do Núcleo de Teatro do Sisejufe em espetáculo virtual

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