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Educar para além do capital

Por Ivana Jinkings – 14/07/05

O ensaio que dá título a este volume foi escrito por István Mészáros para a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, no dia 28 de julho de 2004. Nesse texto, o professor emérito da Universidade de Sussex afirma que a educação não é um negócio, é criação. Que educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida. Na sessão inaugural no ginásio Gigantinho, enfatizou o sentido mais enraizado da frase "a educação não é uma mercadoria".

Em "A educação para além do capital", Mészáros ensina que pensar a sociedade tendo como parâmetro o ser humano exige a superação da lógica desumanizadora do capital, que tem no individualismo, no lucro e na competição seus fundamentos. Que educar é – citando Gramsci – colocar fim à separação entre Homo faber e Homo sapiens; é resgatar o sentido estruturante da educação e de sua relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatórias. E recorda que transformar essas idéias e princípios em práticas concretas é uma tarefa a exigir ações que vão muito além dos espaços das salas de aula, dos gabinetes e dos fóruns acadêmicos. Que a educação não pode ser encerrada no terreno estrito da pedagogia, mas tem de sair às ruas, para os espaços públicos, e se abrir para o mundo.

Pensando na construção da ruptura com a lógica do capital, Mészáros reflete nas páginas deste livro sobre algumas questões de primeira ordem, tais como: Qual o papel da educação na construção de um outro mundo possível? Como construir uma educação cuja principal referência seja o ser humano? Como se constitui uma educação que realize as transformações políticas, econômicas, culturais e sociais necessárias?

István Mészáros nasceu em 1930, em Budapeste, onde completou os estudos fundamentais na escola pública. Proveniente de uma família modesta, foi criado pela mãe, operária, e por força da necessidade tornou-se ele também – mal entrava na adolescência – trabalhador numa indústria de aviões de carga. Com apenas doze anos, o jovem István aumentou a idade no seu registro de nascimento para alcançar a idade mínima de dezesseis anos e ser aceito na fábrica. Passava, assim – como homem "adulto" –, a receber maior remuneração que a de sua mãe, operária qualificada da Standard Radio Company (uma corporação transnacional americana). A diferença considerável entre suas remunerações semanais foi a primeira experiência marcante e a mais tangível em seu aprendizado sobre a natureza das empresas transnacionais e da exploração particularmente severa das mulheres trabalhadoras pelo capital.

Somente após o final da Segunda Guerra, em 1945, pôde se dedicar melhor aos estudos. Começou a trabalhar como assistente de Georg Lukács no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste em 1951 e defendeu sua tese de doutorado em 1954. Mészáros seria o sucessor de Lukács na Universidade, porém, após o levante húngaro de outubro de 1956, com a entrada das tropas soviéticas no país, exilou-se na Itália – onde lecionou na Universidade de Turim –, indo posteriormente trabalhar nas universidades de St. Andrews (Escócia), York (Canadá), e finalmente em Sussex (Inglaterra), onde em 1991 recebeu o título de Professor Emérito.

Autor de obra vasta e significativa, ganhador de prêmios como o Attila József, em 1951, e o Isaac Deutscher Memorial, em 1970, Mészáros é considerado um dos mais importantes pensadores da atualidade. Sua experiência como operário que teve acesso ao estudo na Hungria "socialista", em meio às grandes tragédias do século XX, foi possivelmente determinante para a compreensão da educação como forma de superar os obstáculos da realidade: István – assim como Donatella, sua companheira desde 1955 e também professora na rede pública de ensino – sempre militou em defesa da escola da maioria, das periferias, aquela que oferece possibilidades concretas de libertação para todos.

Ele alerta, porém, que o simples acesso à escola é condição necessária, mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos. E que o deslocamento do processo de exclusão educacional não se dá mais principalmente na questão do acesso à escola, mas sim dentro dela, por meio das instituições da educação formal. O que está em jogo não é apenas a modificação política dos processos educacionais – que praticam e agravam o apartheid social –, mas a reprodução da estrutura de valores que contribui para perpetuar uma concepção de mundo baseada na sociedade mercantil.

Mészáros sustenta que a educação deve ser sempre continuada, permanente, ou não é educação. Defende a existência de práticas educacionais que permitam aos educadores e alunos trabalharem as mudanças necessárias para a construção de uma sociedade na qual o capital não explore mais o tempo de lazer, pois as classes dominantes impõem uma educação para o trabalho alienante, com o objetivo de manter o homem dominado. Já a educação libertadora teria como função transformar o trabalhador em um agente político, que pensa, que age, e que usa a palavra como arma para transformar o mundo. Para ele, uma educação para além do capital deve, portanto, andar de mãos dadas com a luta por uma transformação radical do atual modelo econômico e político hegemônico.

Estudioso da obra de Marx, Mészáros acredita que a sociedade só se transforma pela luta de classes. Limitar, portanto, uma mudança educacional radical "às margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação qualitativa. [...] É por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente" .

Usando como referência duas grandes figuras da burguesia iluminista – o economista Adam Smith e o educador utópico Robert Owen –, o autor deste livro advoga que o capital é irreformável porque, pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é incontrolável e incorrigível. Seria, desse ponto de vista, absurdo esperar uma "formulação de um ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em vigor, que considerasse a hipótese da dominação dos servos, como classe, sobre os senhores da bem estabelecida classe dominante" . Naturalmente, o mesmo vale para a alternativa hegemônica fundamental entre capital e trabalho. Não surpreende, portanto, que "mesmo as mais nobres utopias educacionais, anteriormente formuladas do ponto de vista do capital, tivessem de permanecer estritamente dentro dos limites da perpetuação do domínio do capital como modo de reprodução social metabólica" .

Pequeno em tamanho, "A educação para além do capital" é um livro imenso em esperança e determinação. Nele, o filósofo marxista condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a idéia de que não existe alternativa à globalização capitalista. Em Mészáros, educar não é a mera transferência de conhecimentos, mas sim conscientização e testemunho de vida. É construir, libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que a história é um campo aberto de possibilidades. Esse é o sentido de se falar de uma educação para além do capital: educar para além do capital implica pensar uma sociedade para além do capital.

Aos leitores que queiram conhecer melhor as opiniões de István Mészáros sobre educação, sugiro a leitura do capítulo "A alienação e a crise da educação", sobre as utopias educacionais, em Marx: a teoria da alienação, a ser publicado pela Boitempo em 2005. Nessa obra, o pensador húngaro reafirma a necessidade de transcender as relações sociais de produção capitalistas, com o objetivo de conceber uma estratégia educacional socialista. Ele discute nesse texto o conceito de "educação estética" , tentativa isolada de enfrentar a desumanização do sistema educacional na sociedade capitalista. E conclui que a superação positiva da alienação é tarefa educacional que exige uma "revolução cultural" radical para ser colocada em prática.

A tradução que aqui se apresenta foi feita a partir do original em inglês Education Beyond Capital, por Isa Tavares, com texto final de Sérgio Luiz Mansur e Luis Gonzaga Fragoso. A revisão técnica coube à professora de Sociologia da Unesp, Maria Orlanda Pinassi. Nos textos de Mészáros, as notas de rodapé numeradas são do autor; as indicadas com asterisco são dos revisores da tradução e vêm marcadas no final com (N.R.T.).

Registro o agradecimento da editora a Sebastião Salgado, que autorizou o uso da foto que ilustra a capa (uma menina fazendo os deveres escolares e tomando conta dos irmãos enquanto a mãe trabalha) deste livro, cujos direitos autorais – assim como de toda a obra de Mészáros publicada pela Boitempo no Brasil – foram cedidos para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST.

* Ivana Jinkings é editora da Boitempo.

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Há um fino golpe no ar

Por Elio Gaspari, para O Globo e Folha de S. Paulo – 14/07/05

É golpista a articulação de uma renúncia de Lula à reeleição. Embrulhada numa Sacola da Daslu (o Bolsa-Família dos tucanos), ela funcionaria assim:

1 - Lula vai à televisão e anuncia que não disputará a reeleição.

2 - O Congresso aprova uma emenda constitucional que acaba com a reeleição e aumenta de quatro para cinco anos o mandato dos próximos presidentes da República.

3 - Desmoralizado, o companheiro vai para casa, o PT definha e o PSDB volta ao Planalto.

A idéia é golpista porque coloca a Constituição a reboque de um arranjo. As leis da terra dizem que o mandato de Lula vai até o dia 1º de janeiro de 2007, quando será substituído na Presidência pelo cidadão escolhido em 2006. Essas mesmas leis garantem ao companheiro o direito de disputar a reeleição.

O arranjo embute a cassação dos cidadãos encarregados de eleger o presidente da República. Cassa-lhes o direito de julgar Lula. Se ele quiser disputar a reeleição, duas coisas podem acontecer: ganha ou perde. Nos dois resultados, seu destino será decidido pela patuléia soberana que o pôs no Planalto em 2002.

Os hierarcas de Brasília não têm mandato para fazer um cambalacho que tira dos eleitores o direito de decidir a questão. Tem gente disposta a mostrar que continua confiando no presidente, assim como tem gente que venderia a cueca para ter o gosto de mandá-lo de volta para São Bernardo.

O interesse pela renúncia de Lula reflete dois tipos de receios. A desistência seria conveniente para preservá-lo. Uma espécie de trégua no andar de cima. Esse é o receio bem-intencionado. Maligno é o medo de que, uma vez candidato, Lula se reeleja. Afinal, se esse medo não existisse, a desistência seria desnecessária, por irrelevante.

Medo de voto é coisa perigosa. Não custa lembrar uma brilhante construção do jornalista Carlos Lacerda, em 1950: "O sr. Getúlio Vargas [...] não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito".

Até aí, tudo bem, mas Lacerda continua: "Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar". As desgraças da política nacional na segunda metade do século passado vinham das duas primeiras negativas: "não deve ser candidato" e "não deve ser eleito".

Era o medo da volta de Vargas, que virou medo da chegada de João Goulart e, mais tarde, tornou-se o medo (absolutamente despropositado) da vitória de Lula. Trata-se de um golpezinho esperto porque seria ratificado pela vítima. Como na mágica de 1961, quando João Goulart conformou-se com o parlamentarismo de mentirinha que salvou a face de uma revolta de generais derrotada nas ruas. É também um golpe bem-educado, pois assenta-se exclusivamente num conchavo parlamentar. Não rosna a força das armas nem a da rua.

Em 1840, com o Golpe da Maioridade, os mandarins do Império colocaram um garoto de 14 anos no trono do Brasil. Na República, sucederam-se os Golpes da Menoridade, todos destinados a substituir a vontade de um povo considerado incapaz. A idéia é sempre a mesma: em nome de uma conciliação destinada a aplacar as tensões da Guerra Fria (no século 20) ou dos mercados financeiros (no 21) aceita-se qualquer acordo, desde que a escumalha fique de fora.

Se Lula achar que deve disputar a reeleição, não se pode tirar do povo brasileiro o direito de decidir onde o companheiro vai morar.

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Quanto algumas ONGs ganham com a miséria?

Por Sério Domingues* – 06/06/05 

"Quanto vale ou é por quilo?" é o mais novo filme de Sérgio Bianchi. ONGs e entidades desonestas são acusadas de lucrarem com a miséria, usando dinheiro público. E ainda mostra como a miséria tem cor e endereço definidos. É negra e favelada.

Infelizmente o filme não vai chegar ao grande público. Mas é bastante didático e coloca o dedo na ferida da "indústria da solidariedade". Deveria ser visto em escolas, cursinhos populares, associações comunitárias. Mas sempre seguido de debates. Até para que ONGs e entidades sérias possam se defender. 

O filme começa com a história de uma escrava que conseguiu comprar sua liberdade, no final do século 18. Trabalhando e poupando, ela conseguiu ter uma pequena propriedade e alguns escravos. Mas, eis que aparecem alguns capitães-do-mato em seu rancho. São caçadores de escravos fugitivos. Eles prendem um de seus cativos. Ela protesta, mas não adianta. Seguindo os caçadores, ela vê que eles entregam o negro na casa de um senhor branco. A negra bate à porta do dito cujo. Mostra os papéis que provam ser ela a proprietária do escravo. O senhor branco fecha a porta na cara dela. Revoltada, ela grita: "lugar de ladrão é na cadeia". Resultado: é processada e condenada por perturbação da ordem pública. Trata-se de um caso verdadeiro. Ao longo do filme, eles se repetirão, com os devidos registros e datas.

Esta cena mostra que ser proprietário no Brasil não basta. É preciso ser branco também. Mesmo hoje, ter um automóvel novo e ser negro é motivo suficiente para ser vítima de batidas policiais ou coisa pior. Mas o caso revela outra coisa, também. É o mecanismo de repasse da dominação. A negra liberta também tem seus escravos. É natural, diz o narrador do filme. É assim que funcionava o sistema na época. Só que esse mecanismo continua a funcionar, diz o filme.

Para ilustrar isso há uma cena nos tempos de hoje. Uma Kombi chega na madrugada para ajudar mendigos. Distribuir cobertas, sopa e café. Logo em seguida, um outro grupo chega em outra perua. É expulso pela líder do primeiro veículo. Ela quase diz "esses mendigos são meus. Caiam fora". É a remediada ajudando os esfarrapados, para continuar recolhendo donativos e fazendo seu pé-de-meia.

Voltando ao passado escravista, o filme conta a história de uma escrava idosa que tenta juntar o dinheiro suficiente para se libertar. Conhece uma senhora branca que não é rica, mas é esperta. Paga a liberdade da velha escrava em troca do trabalho dela por mais um ano, pago com juros. O investimento dá resultado. A velhinha acaba tendo que trabalhar por mais 3 anos antes de se ver livre de sua "benfeitora".

O paralelo é claro. Tanto no tempo da escravidão, como na época atual, há um espaço para fazer jogadas. Num caso, são os brancos pobres explorando negros cativos. No outro, são empreendedores espertos da solidariedade transformando a miséria em fonte de riqueza. De um lado, continuam sendo quase todos brancos. De outro, quase todos são negros.

Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos

Os paralelos vão se multiplicando. Mais um caso antigo aparece. Fala sobre os capitães-do-mato da época da escravidão. A maioria era formada por negros. Viviam de caçar escravos fugidos. É o caso de um deles, que captura uma negra fugida. Ela está grávida e aborta no momento em que é entregue a seu dono. A negra sangra ao lado dos dois, enquanto o narrador explica que o dinheiro ganho pelo caçador servirá para que o filho tenha uma vida melhor que a dele.

De volta ao mundo atual, um desempregado é pressionado pela mulher grávida e pela tia a trazer dinheiro para casa. Desesperado, ele vira matador-de-aluguel. Suas vítimas são negras e pobres como ele. Não seria mais do que um capitão-do-mato moderno, e também procura um futuro melhor para seu filho. Apesar disso, a tia do matador explica que serviços como o que ele faz conta com gente muito mais profissional e treinada. Enquanto ela fala, aparece a cena mais corajosa do filme. Um camburão invade o calçadão da Praça da Sé no meio da madrugada. Os policiais arrancam crianças-de-rua de seu sono, ao pé de uma árvore. Jogam-nas dentro do compartimento dos presos. Tudo indica que o destino delas será o extermínio.

Continuam os casos registrados. Na época do império, um negro é alugado para fazer a contabilidade de uma empresa. Acusado de roubo, foge. É preso e violentamente espancado. Seu proprietário processa o dono da empresa que o alugou. Prova que o escravo não roubara nada. Exige indenização, dizendo que seu patrimônio foi danificado. Ganha a causa e recupera com lucros o investimento perdido na recuperação do escravo.

É desse jeito que nasceu o capitalismo. Seres humanos eram mercadorias. Depois no capitalismo maduro, tornaram-se menos do que isso. Apenas objetos de exploração. Mas hoje, também há os que nem isso são mais. São os desempregados, mendigos, presidiários, crianças abandonadas.

Nem por isso deixam de ser fonte de lucros, acusa o filme de Bianchi. Mas também sobram ataques aos governos. Há, por exemplo, uma propaganda governamental que conta as maravilhas envolvidas com a criação de empregos através da construção de presídios. Um outro comercial cita o dinamismo da ação solidária. Um entusiasmado locutor diz que cada criança desamparada gera 5 empregos. A lógica é óbvia. Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos!

Mas tudo isso tem uma galinha dos ovos de ouro. É o acesso aos fundos públicos. Seminários e cursos ensinam como agarrar essa galinha sem ficar só com as penas nas mãos. O caminho passa por conhecer a pessoa certa na hora certa e no lugar adequado. A taxa de acesso varia entre 15% e 20%, claro.

Uma conta muito didática é exposta. Diz o filme que são cerca de 10 mil crianças de rua no Brasil. As verbas públicas reservadas para dar conta do problema seriam de, mais ou menos, 1 milhão de reais. Este milhão dividido pelas 10 mil crianças seria suficiente para lhes pagar escola particular do primário até a faculdade, por exemplo. Mas esse dinheiro precisa passar por ONGs, entidades assistenciais e empresas "solidárias". Tal como no caso da senhora escrava e da branca esperta a liberdade tem intermediários prontos a lucrar com isso.

Entidades "pilantrópicas" seqüestram dinheiro público usando os pobres como reféns

O que parece ser uma alternativa a tudo isso surge com o personagem do presidiário negro. Numa cela superlotada ele olha para a câmera e explica "Quando éramos escravos, éramos máquinas. Investimentos de capital. Tínhamos que ser mantidos alimentados e saudáveis. Agora, somos escravos sem senhor". E conclui: "Na democracia, só existe liberdade para quem pode consumir".

Esse mesmo personagem foge da cadeia. Pagou para isso e, agora, quer recuperar o investimento. Seqüestra um dos sócios de uma ONG. Consegue receber o resgate, depois de enviar uma orelha e outros pedaços do refém à sua esposa. Chama a isso de redistribuição de renda.

Enquanto isso, a negra Arminda descobre o superfaturamento na compra dos computadores feita por uma ONG para sua comunidade. Consegue provas da maracutaia. Exige que a entidade use o dinheiro que desviou para comprar computadores decentes. Sem conseguir ser atendida, ela invade uma festa da entidade e grita: "Lugar de ladrão é na cadeia".

Diante disso, os pilantras e seus amigos políticos decidem resolver o problema. O matador-de-aluguel é convocado. Vai atrás de Arminda, tal como o capitão-do-mato fizera com a escrava fugida. Arminda morre com um tiro. O filme acaba. A sensação é de que não há saída. Mas, há um final alternativo.

Depois de iniciados os letreiros finais, a cena se repete. Dessa vez, Arminda convence o matador a poupar sua vida. Propõe formar um grupo para seqüestrar todos "os filhos da puta que roubam dinheiro do Estado". Agora sim, o filme acaba.

O problema é que o final alternativo também não aponta soluções. Claro que a vontade é concordar com Arminda e sair fazendo justiça com as próprias mãos. Mas, justiça será feita mesmo é coletivamente. A partir da organização dos de baixo para exigir políticas públicas reais. ONGs desonestas e entidades "pilantrópicas" devem ser condenadas. Elas seqüestram o dinheiro público usando os pobres como reféns. Mas, seqüestrar os seqüestradores não resolve. Eles só existem porque se beneficiam do esquema maior do poder. Da terrível distribuição de renda e da secular dominação racista.

Além disso, há o risco de valorizar demais as relações de dominação e exploração entre pobres e menos pobres. O principal é fazer mira nos poderosos, nos governos ou fora deles. O resto é conseqüência. De qualquer maneira, é um filme corajoso.
 
* Sério Domingues é sociólogo,  integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas.

Por Sério Domingues* – 06/06/05  

"Quanto vale ou é por quilo?" é o mais novo filme de Sérgio Bianchi. ONGs e entidades desonestas são acusadas de lucrarem com a miséria, usando dinheiro público. E ainda mostra como a miséria tem cor e endereço definidos. É negra e favelada.

Infelizmente o filme não vai chegar ao grande público. Mas é bastante didático e coloca o dedo na ferida da "indústria da solidariedade". Deveria ser visto em escolas, cursinhos populares, associações comunitárias. Mas sempre seguido de debates. Até para que ONGs e entidades sérias possam se defender.  

O filme começa com a história de uma escrava que conseguiu comprar sua liberdade, no final do século 18. Trabalhando e poupando, ela conseguiu ter uma pequena propriedade e alguns escravos. Mas, eis que aparecem alguns capitães-do-mato em seu rancho. São caçadores de escravos fugitivos. Eles prendem um de seus cativos. Ela protesta, mas não adianta. Seguindo os caçadores, ela vê que eles entregam o negro na casa de um senhor branco. A negra bate à porta do dito cujo. Mostra os papéis que provam ser ela a proprietária do escravo. O senhor branco fecha a porta na cara dela. Revoltada, ela grita: "lugar de ladrão é na cadeia". Resultado: é processada e condenada por perturbação da ordem pública. Trata-se de um caso verdadeiro. Ao longo do filme, eles se repetirão, com os devidos registros e datas.

Esta cena mostra que ser proprietário no Brasil não basta. É preciso ser branco também. Mesmo hoje, ter um automóvel novo e ser negro é motivo suficiente para ser vítima de batidas policiais ou coisa pior. Mas o caso revela outra coisa, também. É o mecanismo de repasse da dominação. A negra liberta também tem seus escravos. É natural, diz o narrador do filme. É assim que funcionava o sistema na época. Só que esse mecanismo continua a funcionar, diz o filme.

Para ilustrar isso há uma cena nos tempos de hoje. Uma Kombi chega na madrugada para ajudar mendigos. Distribuir cobertas, sopa e café. Logo em seguida, um outro grupo chega em outra perua. É expulso pela líder do primeiro veículo. Ela quase diz "esses mendigos são meus. Caiam fora". É a remediada ajudando os esfarrapados, para continuar recolhendo donativos e fazendo seu pé-de-meia.

Voltando ao passado escravista, o filme conta a história de uma escrava idosa que tenta juntar o dinheiro suficiente para se libertar. Conhece uma senhora branca que não é rica, mas é esperta. Paga a liberdade da velha escrava em troca do trabalho dela por mais um ano, pago com juros. O investimento dá resultado. A velhinha acaba tendo que trabalhar por mais 3 anos antes de se ver livre de sua "benfeitora". 

O paralelo é claro. Tanto no tempo da escravidão, como na época atual, há um espaço para fazer jogadas. Num caso, são os brancos pobres explorando negros cativos. No outro, são empreendedores espertos da solidariedade transformando a miséria em fonte de riqueza. De um lado, continuam sendo quase todos brancos. De outro, quase todos são negros.

Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos

Os paralelos vão se multiplicando. Mais um caso antigo aparece. Fala sobre os capitães-do-mato da época da escravidão. A maioria era formada por negros. Viviam de caçar escravos fugidos. É o caso de um deles, que captura uma negra fugida. Ela está grávida e aborta no momento em que é entregue a seu dono. A negra sangra ao lado dos dois, enquanto o narrador explica que o dinheiro ganho pelo caçador servirá para que o filho tenha uma vida melhor que a dele.

De volta ao mundo atual, um desempregado é pressionado pela mulher grávida e pela tia a trazer dinheiro para casa. Desesperado, ele vira matador-de-aluguel. Suas vítimas são negras e pobres como ele. Não seria mais do que um capitão-do-mato moderno, e também procura um futuro melhor para seu filho. Apesar disso, a tia do matador explica que serviços como o que ele faz conta com gente muito mais profissional e treinada. Enquanto ela fala, aparece a cena mais corajosa do filme. Um camburão invade o calçadão da Praça da Sé no meio da madrugada. Os policiais arrancam crianças-de-rua de seu sono, ao pé de uma árvore. Jogam-nas dentro do compartimento dos presos. Tudo indica que o destino delas será o extermínio.

Continuam os casos registrados. Na época do império, um negro é alugado para fazer a contabilidade de uma empresa. Acusado de roubo, foge. É preso e violentamente espancado. Seu proprietário processa o dono da empresa que o alugou. Prova que o escravo não roubara nada. Exige indenização, dizendo que seu patrimônio foi danificado. Ganha a causa e recupera com lucros o investimento perdido na recuperação do escravo.

É desse jeito que nasceu o capitalismo. Seres humanos eram mercadorias. Depois no capitalismo maduro, tornaram-se menos do que isso. Apenas objetos de exploração. Mas hoje, também há os que nem isso são mais. São os desempregados, mendigos, presidiários, crianças abandonadas.

Nem por isso deixam de ser fonte de lucros, acusa o filme de Bianchi. Mas também sobram ataques aos governos. Há, por exemplo, uma propaganda governamental que conta as maravilhas envolvidas com a criação de empregos através da construção de presídios. Um outro comercial cita o dinamismo da ação solidária. Um entusiasmado locutor diz que cada criança desamparada gera 5 empregos. A lógica é óbvia. Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos!

Mas tudo isso tem uma galinha dos ovos de ouro. É o acesso aos fundos públicos. Seminários e cursos ensinam como agarrar essa galinha sem ficar só com as penas nas mãos. O caminho passa por conhecer a pessoa certa na hora certa e no lugar adequado. A taxa de acesso varia entre 15% e 20%, claro.

Uma conta muito didática é exposta. Diz o filme que são cerca de 10 mil crianças de rua no Brasil. As verbas públicas reservadas para dar conta do problema seriam de, mais ou menos, 1 milhão de reais. Este milhão dividido pelas 10 mil crianças seria suficiente para lhes pagar escola particular do primário até a faculdade, por exemplo. Mas esse dinheiro precisa passar por ONGs, entidades assistenciais e empresas "solidárias". Tal como no caso da senhora escrava e da branca esperta a liberdade tem intermediários prontos a lucrar com isso.

Entidades "pilantrópicas" seqüestram dinheiro público usando os pobres como reféns

O que parece ser uma alternativa a tudo isso surge com o personagem do presidiário negro. Numa cela superlotada ele olha para a câmera e explica "Quando éramos escravos, éramos máquinas. Investimentos de capital. Tínhamos que ser mantidos alimentados e saudáveis. Agora, somos escravos sem senhor". E conclui: "Na democracia, só existe liberdade para quem pode consumir".

Esse mesmo personagem foge da cadeia. Pagou para isso e, agora, quer recuperar o investimento. Seqüestra um dos sócios de uma ONG. Consegue receber o resgate, depois de enviar uma orelha e outros pedaços do refém à sua esposa. Chama a isso de redistribuição de renda.

Enquanto isso, a negra Arminda descobre o superfaturamento na compra dos computadores feita por uma ONG para sua comunidade. Consegue provas da maracutaia. Exige que a entidade use o dinheiro que desviou para comprar computadores decentes. Sem conseguir ser atendida, ela invade uma festa da entidade e grita: "Lugar de ladrão é na cadeia". 

Diante disso, os pilantras e seus amigos políticos decidem resolver o problema. O matador-de-aluguel é convocado. Vai atrás de Arminda, tal como o capitão-do-mato fizera com a escrava fugida. Arminda morre com um tiro. O filme acaba. A sensação é de que não há saída. Mas, há um final alternativo.

Depois de iniciados os letreiros finais, a cena se repete. Dessa vez, Arminda convence o matador a poupar sua vida. Propõe formar um grupo para seqüestrar todos "os filhos da puta que roubam dinheiro do Estado". Agora sim, o filme acaba.

O problema é que o final alternativo também não aponta soluções. Claro que a vontade é concordar com Arminda e sair fazendo justiça com as próprias mãos. Mas, justiça será feita mesmo é coletivamente. A partir da organização dos de baixo para exigir políticas públicas reais. ONGs desonestas e entidades "pilantrópicas" devem ser condenadas. Elas seqüestram o dinheiro público usando os pobres como reféns. Mas, seqüestrar os seqüestradores não resolve. Eles só existem porque se beneficiam do esquema maior do poder. Da terrível distribuição de renda e da secular dominação racista.

Além disso, há o risco de valorizar demais as relações de dominação e exploração entre pobres e menos pobres. O principal é fazer mira nos poderosos, nos governos ou fora deles. O resto é conseqüência. De qualquer maneira, é um filme corajoso.
 

* Sério Domingues é sociólogo,  integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas.

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A contra-hegemonia chega à TV

Por Gustavo Barreto* - 06/06/05

Imagine um canal de televisão que se proponha a combater o "discurso único" das grandes redes globais de comunicação, todas com sede nos países ricos. Uma tevê que mostre o sul com os olhos do sul, revelando tudo o que vem sendo sonegado ao público sobre as verdadeiras lutas sociais e de libertação travadas pelos povos latino-americanos. Uma emissora para romper com o bloqueio informativo imposto pelas emissoras dos países do norte hegemônico, construindo uma alternativa concreta e de grande alcance para a democratização da informação em escala internacional. Um canal que sirva, enfim, como instrumento de integração dos povos de toda a América, estimulando a participação de comunicadores populares e dos movimentos sociais latino-americanos. Difícil imaginar?

Pois é exatamente esta a proposta da Telesur, que entrou no ar às 13 horas do dia 24 de maio, com duas horas de programação e em caráter experimental, e foi transmitido pela TV Comunitária de Brasília, que acumulará também a função de sucursal brasileira da emissora. Seu sinal de satélite — NSS 806 - pode ser captado da Patagônia até o Canadá. Em Caracas (Venezuela), sede da multi-estatal, as transmissões se iniciaram com uma entrevista coletiva que contou com a participação de representantes de Venezuela, Uruguai, Argentina e Cuba — países que investiram o capital inicial para a fundação da emissora.

Ampla estrutura

O lançamento oficial da programação da emissora está previsto para o dia 24 de julho, data em que é comemorado o nascimento de Simon Bolívar, com transmissão de três segmentos diários de oito horas. As reproduções se darão, em um primeiro momento, a partir da solidariedade de diversas emissoras públicas, educativas, universitárias e comunitárias. O sinal é capitado via satélite e o equipamento é relativamente barato para as tevês que quiserem reproduzir o material — menos de R$ 1.500, preço irrisório perto dos orçamentos usuais de tevê. O dinheiro diz respeito a um receptor digital de 400BX, uma antena para sintonizar os canais e um técnico para manusear o equipamento.

Já existem sucursais estruturadas em nove países, inclusive em Washington, nos Estados Unidos, profissionais em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, além de correspondentes em Buenos Aires, La Paz, Havana, Cidade do México, Montevidéu, Nova Iorque e Bogotá. O Brasil, formalmente, não se associou à nova empresa, mas o país é uma peça fundamental do ponto de vista operativo e logístico para a Telesur, porque vai colaborar com os países associados através de dezenas de convênios.

Com uma programação bilingüe — em espanhol e português —, a Telesur transmitirá em 40% do tempo programas jornalísticos, entre noticiários, entrevistas e reportagens. Seus organizadores prometem um jornalismo comprometido com a missão de integrar os povos latino-americanos, resgatando sua verdadeira história de lutas libertárias e defendendo suas tradições, sua cultura, sua arte e seu direito à auto-determinação.

Memória e luta dos povos

O jornalista brasileiro Beto Almeida, diretor multinacional da emissora, explica a proposta. "Nós faremos um jornalismo não panfletário, mas que não será imparcial. O que queremos é revelar a nobreza dos povos em luta e não permitir o esquecimento", disse à Agência Brasil na última quarta (25/5). Já Jorge Enrique Botero, diretor de informação, descartou qualquer comparação que se faça com a CNN ou Al Jazeera. "Telesur é um canal para que nos conheçamos, para vermos-nos com nossos próprios olhos".

Os outros 60% exibirão material de produtores independentes, produções do cinema latino-americano, emissoras de televisão regionais comunitárias e universitárias e de organizações sociais de toda a região. A linguagem visual, como não poderia deixar de ser, remete à história da América Latina. "As bases serão feitas pela informação, retomando a crônica, a reportagem, a entrevista, a investigação, sem se prender ao imediatismo", afirmou o uruguaio Aram Aharonian, vice-presidente e diretor-geral da Telesur.

Promessa de independência

Aram Aharonian, diretor-geral da emissora, explicou que o financiamento para a construção da emissora provém dos estados que compõem a empresa multinacional. "Agora estamos estudando um novo modelo de financiamento". A Telesur foi fundada com um capital inicial de US$ 10 milhões, bancados por Venezuela (51%), Argentina (20%), Cuba (19%) e Uruguai (10%).

De acordo com Gabriel Moriotto, secretário de mídia da Argentina, a Telesur será uma emissora "horizontal, pluralista, ampla e democrática". Moriotto disse não se preocupar com possíveis interferências de governantes na programação da Telesur. "Esse paradigma não funciona mais. As nossas sociedades estão maduras e não há espaço para confundir Estados e governos", disse.

"Não é uma arma para estimular modelos políticos, não é uma ferramenta de difusão de ideologias sobre outros países. A diversidade é a filosofia de programação da Telesur", disse Andrés Izarra, ministro venezuelano de Informação e Comunicação, numa coletiva de imprensa no Teatro Teresa Carreño, em Caracas. Com agências nacionais e internacionais. Mais informações em www.telesurtv.net

* Gustavo Barreto é editor da revista Consciência.Net (www.consciencia.net), colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação (www.piratininga.org.br), estudante de Comunicação Social da UFRJ e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC) pela ECO/UFRJ. Contato por e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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Somos capazes de alimentar o país

Por Romário Rossetto * - 30/05/05

A Agricultura Camponesa, responsável por mais da metade da produção agrícola brasileira tem resistido bravamente, ao longo da história, às políticas governamentais excludentes, que são aliadas aos interesses das classes dominantes. Nossa história é marcada pela luta entre dois modelos de agricultura. De um lado, está o agronegócio - agricultura capitalista, baseada na monocultura, incapaz de alimentar a população e que ainda utiliza a terra de forma altamente mecanizada e usa agrotóxico, e organismos geneticamente modificados que são prejudiciais à saúde. Do outro lado, temos a agricultura camponesa - baseada no policultivo, na mão-de-obra familiar, na produção de alimentos saudáveis e no auto-sustento.

A imprensa burguesa massacra os camponeses com a disseminação da idéia de que a agricultura camponesa é pobre e não proporciona nenhum desenvolvimento para o país. Hoje no País, existem cerca de oito milhões de famílias camponesas, sendo posseiros, arrendatários não capitalistas, parceiros, varzeiros, ribeirinhos, pescadores artesanais, lavradores, agroextrativistas, quebradeiras de coco, povos indígenas, quilombolas e assentados. Esses camponeses produzem cerca de 70% do feijão, 84% da mandioca, 58% da produção de suínos, 54% do leite bovino, 49% do milho e 40% das aves e ovos.

A maior parte do volume de financiamento do Governo vai para os agronegócio. Para a safra 2004/2005 as pequenas propriedades receberam apenas R$ 7 bilhões, enquanto para o agronegócio foram destinados R$ 39,5 bilhões. Em 2003, dez grandes grupos econômicos multinacionais obtiveram R$ 4,3 bilhões do Banco do Brasil, quantidade praticamente igual a que 1,3 milhão de camponeses acessaram, ou seja, cerca de R$ 4,5 bilhões para a safra 2002/2003.

Ao contrario do que muita gente pensa, a agricultura de grande escala gera pouco emprego e causa um êxodo rural, que os centros urbanos não são capazes de absorver com dignidade. As pequenas unidades de produção envolvem mais de 14,4 milhões de trabalhadores rurais, ou seja, 86,6% do total. Enquanto isso, os latifúndios são responsáveis por apenas 2,5% dos empregos, o que corresponde a pouco mais de 420 mil postos de trabalho.

A existência desse atual sistema agrícola excludente, que consiste em expulsar pequenos e médios proprietários do campo, tem por objetivo exterminar a agricultura camponesa. Essa agricultura, tão criminalizada pela mídia, é formada por uma grande diversidade cultural adquirida durante séculos e exerce um papel fundamental na preservação ambiental, no combate à fome e a pobreza e na consolidação do campo.

Nós do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e outros movimentos sociais do campo temos o dever de conscientizar nossos agricultores e a sociedade em geral, da importância de um novo modelo agrícola para o Brasil. E uma das nossas principais bandeiras é a defesa da soberania alimentar dos povos para que possamos decidir sobre nossa própria política agrícola e alimentar.

* Romário Rossetto Direção Nacional do Movimento de Pequenos Agricultores. Colaborou com este artigo para a Agência Adital.

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Igualdade de gênero e participação política

Por Flávia Piovesan* – 27/05/05

Em pesquisa recente a respeito da diferença de direitos entre homens e mulheres, divulgada pelo Fórum Econômico Mundial em 16 de maio, o Brasil alcançou a 51a posição, considerando 58 países -- 30 pertencentes à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico e outros 28 países em desenvolvimento. Foram considerados cinco fatores: participação econômica; oportunidade econômica; atuação política; acesso à educação; e saúde e bem-estar.

Ainda que à frente, nas primeiras posições, despontem os países escandinavos, como Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia, países latino-americanos, como a Colômbia, o Uruguai e a Argentina ocupam uma posição bem mais avançada que a do Brasil, estando, respectivamente, em 30o, 32o e 35o lugar. Note-se que até o Zimbábue e a Indonésia revelam melhor situação, ocupando o 42o e o 46o lugar. No quesito participação política das mulheres, o Brasil é o penúltimo da lista, perdendo apenas para a Jordânia.

O que pode explicar o acentuado e preocupante grau de desigualdade entre homens e mulheres no Brasil, especialmente no campo da participação política?

No horizonte histórico de construção dos direitos das mulheres, jamais se caminhou tanto quanto nas últimas três décadas. Elas compõem o marco divisório em que se concentram os maiores avanços em prol da igualdade de gênero, decorrentes, sobretudo, da capacidade de articulação e mobilização do movimento de mulheres.

No plano jurídico, à luz da Constituição Federal de 1988 (que incorporou a maioria significativa das reivindicações das mulheres) e dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos adotados pelo Brasil, resta assegurada a plena igualdade entre os gêneros no exercício dos direitos civis e políticos, sendo vedada qualquer discriminação contra a mulher.

Todavia, os dados da realidade brasileira invocam a distância entre os avanços normativos e as práticas sociais, que refletem um padrão discriminatório em relação às mulheres.

No campo dos direitos políticos, ainda é bastante reduzida a participação de mulheres no âmbito dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

No Poder Legislativo, em 2001, a média nacional de participação de mulheres correspondia a 11,54%, enquanto que a participação de homens correspondia a 88,46%. Observe-se que as mulheres compõem 50,48% do eleitorado nacional. A direção dos próprios partidos políticos não se mostra igualitária no que tange ao gênero, destacando-se que a participação de mulheres em 2000 apontava a 12%. Este percentual reflete exatamente a participação das mulheres na poder Legislativo, o que retrata a perpetuação da desigualdade de gênero nestas distintas instâncias de participação política.

No Poder Executivo a participação de mulheres, em cargos públicos eletivos, atém-se a 5,71%, enquanto que a participação masculina aponta a 94,29% (dados de 2001). Nos quadros da Administração Pública, embora as mulheres sejam 52,14% dos servidores públicos na esfera da Administração Direta, estão representadas em maior concentração em cargos de menor hierarquia funcional. Na medida em que se avança nos cargos de maior hierarquia funcional, o número de mulheres decresce significativamente. A título exemplificativo, aponte-se que as mulheres compõem 45,53% dos cargos DAS1 (hierarquia inferior) e apenas 13,24% dos cargos DAS6 (hierarquia superior).

No Poder Judiciário, até 2000, não havia qualquer mulher na composição dos Tribunais Superiores. Em 1998, a participação de mulheres era de apenas 2%, sendo que, em 2001, este percentual elevou-se a 8,20%. No tocante às 1a e 2a instâncias jurisdicionais, a elevada participação das mulheres (em média 30% na 1a instância) explica-se pelo fato desses cargos serem ocupados por concurso público e não por indicação política, como ocorre nas instâncias superiores.

Embora as mulheres sejam mais da metade da população nacional, sua representatividade nos quadros dos Poderes Públicos está muito aquém dos 50%, alcançando, no máximo, o percentual de 12% (no caso do Legislativo).

A reduzida participação de mulheres nos postos decisórios traduz a dicotomia entre os espaços público e privado, que acaba por condicionar o exercício de seus direitos mais fundamentais. Se ao longo da história atribuiu-se às mulheres o domínio do privado, a esfera doméstica da casa e da família, gradativamente testemunha-se a reinvenção dos espaços público e privado. Constata-se a crescente democratização do espaço público, mediante a participação ativa de mulheres nas mais diversas arenas sociais. Contudo, resta o desafio de democratização do espaço privado – cabendo ponderar que tal democratização é fundamental para a própria democratização do espaço público.

Daí a relação de interdependência entre os direitos políticos e os direitos civis. Vale dizer, o pleno exercício dos direitos políticos das mulheres requer e pressupõe o pleno exercício de seus direitos civis e vice-versa. Ressalte-se que, até o advento da Constituição de 1988, era legalizada a hierarquia entre os gêneros e a desigualdade absoluta das mulheres no campo dos direitos civis, com base no Código Civil de 1916, apenas revogado em 2002, com a aprovação do novo Código, que veio a romper com o legado discriminatório em relação à mulher.

O maior desafio é introjetar e propagar os valores igualitários e democratizantes consagrados na Constituição e nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, compondo um novo paradigma, emancipatório, capaz de transformar valores sociais e práticas culturais discriminatórias, assegurando o exercício da cidadania civil e política das mulheres brasileiras, nos espaços público e privado, em sua plenitude e com inteira dignidade.

* Flávia Piovesan é professora doutora da PUC-SP nas disciplinas de Direito Constitucional e Direitos Humanos, professora de Direitos Humanos do Programa de Pós Graduação da PUC-SP e do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento na Universidade Pablo Olavide (Espanha), visiting fellow do Programa de Direitos Humanos da Harvard Law School (1995 e 2000), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do Estado de São Paulo.

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Os filhos da pauta de dona Condoleezza

Por Mário Augusto Jakobskind* - 05/05/05

Que papelão o da mídia! Bastou a Secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, passar dois dias em Brasília, destilando ódio contra o Presidente constitucional e democrático Hugo Chávez Frias, para que jornais, rádios e tevês seguissem a trilha da infâmia. Até mesmo a "Tribuna da Imprensa" teve uma recaída, que remonta os tempos do lacerdismo pró-Estados Unidos, com a manchete "Chávez provoca Estados Unidos e faz acordo com Fidel". Algo extremamente comprometedor, pois foi copiado do bombardeio informativo produzido pelas agências de notícias.

O jornal da rua do Lavradio adotou a mesma linha da revista "Veja", sabidamente pautada pela CIA e Departamento de Estado. A TV Globo não mudou a rotina dos 40 anos de existência, manipulando informação, mentindo e tentando formar opinião de acordo com os interesses de Washington. A longa tradição golpista da casa repete o que tem feito nos últimos anos em relação à Venezuela, cujo auge aconteceu, em abril de 2002, quando o âncora Renato Machado chegou mesmo a, no Bom Dia Brasil, saudar a queda de Hugo Chávez, mas acabou tendo de se curvar, naturalmente a contragosto, a realidade da volta do presidente venezuelano nos braços do povo.

Assim funciona, vale assinalar, a "fábrica de realidade", para usar uma expressão do todo poderoso sucessor Roberto Irineu Marinho. Esta mesma "fábrica" coloca agora o único panfletário a favor existente no mundo, o senhor Arnaldo Jabor, para desancar, a todo o momento, contra Chávez e, de quebra, contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

O brasileiro médio se informando pela TV Globo, lendo semanalmente a "Veja" ou diariamente "O Globo", terá a seu dispor meias verdades, informações mentirosas e deturpadas. Nesse sentido, desta vez o recorde em termos de desinformação fica por conta da senhora Miriam Leitão, com uma coluna diária de economia, que visivelmente defende poderosos interesses econômicos. Sobre a Venezuela, Leitão, demonstrando seguir com unhas e dentes a pauta de dona Condoleezza, mentiu de forma primária, contando com a memória curta dos leitores ou mesmo a desinformação, ao afirmar em uma de suas "análises" que "Chávez dissolveu o Congresso" etc e tal. A partir desta e de outras informações, também mentirosas, a colunista colonizada, "analisou" o governo da Venezuela.

Em outro trecho de suas observações, para enganar os desavisados, Leitão acusa Chávez de usar a técnica das "ditaduras populistas, enfraquecendo partidos e estabelecendo relação direta com as massas". Outras mentiras deslavadas foram assacadas de forma primária e que não resistem a menor análise, como, por exemplo, a de que "Chávez dividiu o seu país de uma forma dramática e talvez irreversível". Leitão não poupou o presidente venezuelano pelo fato de que em "um raro bom momento econômico, (Chávez) distribuiu dinheiro da estatal de petróleo em campanhas populistas e assim venceu o plebiscito".

Para Miriam Leitão e outros colunistas do gênero, distribuir renda significa fazer "campanhas populistas". Revelando profundo desconhecimento da realidade venezuelana, a colunista amestrada de "O Globo", acusa Chávez de ter enfraquecido os partidos de oposição, esquecendo-se, ou, na verdade, omitindo o fato de a Ação Democrática, ou seja, social democrata, e os social-cristãos, agrupados no Copei, terem se esgotado por si só, depois de governarem o país, em sistema de revezamento, por 40 anos. Ambos os partidos foram responsáveis por um sistema corrupto e que manteve o povo alijado de qualquer iniciativa que levasse a combater as desigualdades sociais. Isso, para Miriam Leitão, é o certo, é a democracia.

Miriam Leitão omitiu o fato de que as divisas do petróleo antes de 1998, ou seja, antes da eleição de Chávez, iam para o bolso de poucos privilegiados, que usufruíam os benefícios da grana. Dois dos baluartes do sistema anterior foram os ex-Presidentes Carlos Andrés Pérez e Jaime Lusinchi, social-democratas. Ambos estão foragidos da Justiça venezuelana e se voltarem ao país terão de responder por desvios do erário público. É esta a democracia, na verdade entre aspas, que as senhoras Condoleezza Rice e sua fiel escudeira Miriam Leitão querem para o continente latino-americano. Se, porventura, algum governante não aceitar esses preceitos, será pressionado e desestabilizado, ou mesmo condenado à morte, como aconteceu em alguns casos.

Se a colunista colonizada de "O Globo" não sabe, Chávez nunca dissolveu Congresso nenhum, muito pelo contrário. Uma de suas promessas de campanha, que o elegeu em 1998, foi em favor de uma Assembléia Constituinte. Tudo o que foi feito em matéria de mudanças recebeu o aval do povo, através de referendos. A Venezuela, isto sim, aprofundou o processo de democracia participativa e estabeleceu que o ocupante de qualquer cargo eletivo, inclusive o Presidente da República, ficasse sujeito à perda do mandato, bastando para tanto que um número determinado de eleitores (20% dos votantes) firmasse uma petição nesse sentido. Qual a Constituição no mundo que estabelece essa norma? Será que a senhora Miriam Leitão responde a essa pergunta? É possível que já tenha respondido, pois uma consagrada colunista de economia que se empenhou em ser repórter de rua da TV Globo, sob um sol escaldante, no centro de Caracas, para fazer o jogo dos golpistas que arrancaram Chávez do Poder por 47 horas, já disse claramente a que veio.

Por essas e muitas outras, tanto em matérias nacionais e internacionais, que a opinião pública brasileira está cada vez mais sujeita a "fábricas de realidades" ao estilo Globo, que levam os telespectadores, ouvintes e leitores a serem enganados diariamente com meias verdades ou mentiras deslavadas. Para combater essa desonestidade jornalística a serviço de interesses espúrios, está na hora do movimento social e popular criar um ombusdman (ouvidor) da mídia, que agiria como um fiscal da opinião pública para mostrar como colunistas colonizados e pré-pagos repetem mentiras com o visível intuito de que virem verdades. Se esse mecanismo funcionar de fato, esses escribas talvez pensem duas vezes antes de fazer mau jornalismo, isto é, passar informações erradas para a sociedade.

Ah, sim: Miriam Leitão & Condoleezza Rice e outros colunistas ou chefetes do gênero, não aceitam a adoção na Venezuela, ou onde quer que seja, da Lei de Responsabilidade Social da Mídia aprovada pelo Legislativo. Preferem que a mídia conservadora, que substituiu os partidos políticos ultrapassados pelos acontecimentos, desinforme ou chegue ao ponto de, impunemente, por exemplo, elaborar horóscopos do tipo "hoje é um bom dia para derrubar o presidente Chávez", como acontecia na Venezuela.

* Mário Augusto Jakobskind é jornalista, conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), membro da redação do jornal Brasil de Fato e jornalista do Sisejufe/RJ.

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América Latina no olho do furacão

 

Por Elaine Tavares * - 04/05/05

Os acontecimentos das últimas semanas fizeram com que os olhos do mundo se voltassem para a América Latina e, desta mirada, muita coisa se pode colocar sob a luz da análise. O povo equatoriano em rebelião botou para correr o presidente Lucio Gutiérrez, que ousou descumprir o pacto feito com a população durante o levante de 2000. Dolarizou a economia, rendeu-se ao Tratado de Livre Comércio com os EUA, garantiu "através da nomeação de juízes da Suprema Corte" a volta de dois ex-presidentes depostos pelo povo e apoiou o Plano Colômbia. Lula ofereceu ajuda e mandou um avião buscá-lo. Dias depois, a toda poderosa secretária de estado dos EUA, Condoleezza Rice, veio ao Brasil, passando por Chile, Colômbia e El Salvador como que a lembrar que é preciso que cada um dos presidentes "mantenha a ordem em casa". Além, disso, sem qualquer pudor, teceu comentários sobre o governo da Venezuela, dentro da lógica estadunidense de estar sempre policiando o mundo para garantir seus interesses. Segundo Rice, os Estados Unidos querem a Venezuela "livre e democrática", o que na linguagem do governo Bush significa: de joelhos diante dos interesses dos EUA.

O presidente brasileiro, Luis Inácio da Silva, por sua vez, agiu como um aluno aplicado do império fornecendo um iluminado palco para que a secretária de estado fizesse de forma explícita uma espécie de "chamado à guerra", quando se manifestou criticando a compra de armas por Hugo Chávez e convocou abertamente as nações vizinhas a somarem-se na "cruzada" de Washington contra Caracas. Essa não é uma novidade para quem acompanhou a também "cruzada" de Washington contra o Iraque, quando, baseados em mentiras sobre perigosas armas químicas, chamaram o mundo a apoiar o massacre que segue ocorrendo até os dias de hoje - com a heróica resistência do povo - mesmo depois de já se ter descoberto que tudo não passou de uma grande farsa para respaldar a invasão.

Tão logo foram divulgadas as provocações estadunidenses, o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Alí Rodríguez Araque, que participava de uma reunião no Chile com representantes da OEA, manifestou-se junto à imprensa para responder as acusações e ameaças da secretária Condoleezza Rice, considerando-as uma inadmissível intromissão na vida da Venezuela.

Já na Venezuela, o ministro da Defesa, Jorge Luis García Carnero, tratou de informar ao mundo, através dos jornais, sobre outras intromissões estadunidenses, estas dentro mesmo do país. Contou que, segundo denúncia do secretário do Conselho de Defesa da Nação (Codena), general de divisão Melvin López Hidalgo, há comprovada infiltração de elementos de organismo dos Estados Unidos na Petróleos de Venezuela (Pdvsa) Occidente.

"Estamos rodeados por elementos da CIA que têm insistido em provocar transtornos na vida institucional do país. Prova disso são os acontecimentos recentes de 2002, quando violaram o espaço aéreo e as águas territoriais. Havia aviões estacionados em Maiquetía em 11 de abril assim como oficiais que participaram ativamente na tomada do Comando do Exército durante o golpe", explicou. O ministro Carnero ainda informou que a Força Armada Nacional (FAN) vai trabalhar duro e sem trégua para encontrar os mecanismos necessários que permitam barrar a sempre presente ação dos agentes da CIA no país.

O fim do convênio militar EUA/Venezuela e a ALBA

Toda a ira da secretária estadunidense não tem como razão apenas os acontecimentos desestabilizadores do Equador, outro país que estava bem amarrado na cordinha da democracia do governo Bush. Ocorre que, também na semana passada, o governo venezuelano decidiu não respaldar mais qualquer convênio que signifique a presença de militares ou agentes estadunidenses no país. Esta decisão foi anunciada no programa Alô Presidente de número 220, pelo próprio Hugo Chávez. "Na Venezuela não vamos mais permitir que oficiais estadunidenses assumam funções em qualquer instituto de capacitação das forças de defesa, muito menos que cumpram qualquer atividade em unidades táticas ou operacionais". Na prática, isso significa soberania e o fim, no país, da famigerada Escola das Américas, coisa que os Estados Unidos não podem tolerar porque, para o governo Bush, ser soberano e agir de forma livre é atentar contra a "democracia". Nesse sentido, pode-se inferir que democracia, para os estadunidenses, é sinônimo de capitalismo subserviente.

Outra atitude de soberania, considerada antidemocrática pelo governo dos EUA, é a decisão do presidente Chávez, de começar com Cuba o processo que chama de Alternativa Bolivariana para a América do Sul e o Caribe, a ALBA - claro contraponto a ALCA estadunidense. Por conta disso, os dois presidentes se encontraram na última semana em Cuba, durante o primeiro encontro para a aplicação da ALBA.

Segundo informes da imprensa cubana, na visita à Feira Bi-nacional, da qual participaram quase 200 venezuelanos, entre empresários e cooperativistas, o presidente cubano Fidel Castro ressaltou a importância estratégica da integração nos moldes propostos pelo presidente Chávez e disse que, assim, a América Latina deixará de ser o "pátio traseiro" do império, como vem sendo considerada desde há anos. Também se referiu às declarações do secretário de estado dos EUA para a América Latina, Otto Reich, que disse aos jornais ser necessário deter imediatamente a aliança Cuba-Venezuela porque essa união pode "colocar em perigo a estabilidade da América". Fidel ironizou: "É absolutamente ridículo que se acuse a Cuba e a Venezuela de desestabilizar a América. Na verdade os que estão desestabilizando são aqueles que nos qualificam de desestabilizadores".

Reich, em declarações à imprensa mundial, seguiu a velha lógica estadunidense de demonizar os adversários e, a exemplo de Rice, deixou muito claro as intenções intervencionistas do seu país. "A combinação do malévolo gênio de Castro, com sua experiência em batalhas políticas e seu desespero econômico, mais o jorro ilimitado de dinheiro que possui Chávez e sua imensa imprudência, ameaçam a estabilidade e a segurança da região". No encontro entre Chávez e Fidel estas declarações foram lidas e provocaram muito riso. Fidel rebateu a idéia de desespero econômico, dizendo que só pode ser por parte dos EUA, visto que Cuba está valorizando o peso cubano e passa por um momento muito bom na área financeira. "Para se ter uma idéia, o custo de uma entrada numa partida de futebol nos Estados Unidos pode financiar 40 partidas em Cuba. E com o que custa ver uma peça teatral nos EUA, pode-se ver 250 em Cuba". Fidel ainda falou sobre a "imprudência" de Chávez de voltar ao poder nos braços do povo, depois do golpe de 11 de abril, e ainda ganhar com grande diferença de votos o referendo de agosto. "Começo e me dar conta que tua amizade está me prejudicando", brincou. "Estamos livres", diz Chávez.

Chávez, por sua vez, frisou de forma categórica que a Venezuela está liberta. Não é mais colônia dos Estados Unidos e tem demonstrado isso com a liberdade de fazer acordos com países da região consolidando a integração latina e caribenha. "Nunca antes, em tão pouco tempo, havíamos chegado tão longe, com dois países fazendo acordos de integração. E nunca se viu isso em 100 anos porque a Venezuela era colônia. Não é mais e, por isso, fazemos acordo com Cuba e outros países irmãos", disse, durante sua visita à Feira.

Na visita a Cuba para consolidar o início da ALBA, foi inaugurado um espaço para a  Petróleos de Venezuela (PDVSA-Cuba), o que significa um estratégico passo para colocar Cuba no centro das operações da PDVSA no Caribe. Também houve a inauguração da sede do Banco Industrial, em Havana, que vai dar sustentação aos convênios firmados, além de créditos a importadores cubanos e a pequenos e médios produtores seguindo a máxima da ALBA que é de desenvolvimento endógenos das nações amigas.

Ainda segundo os informes da imprensa cubana e venezuelana, o convênio comercial assinado na semana passada pretende colocar diversos produtos da Venezuela no mercado cubano o que pode garantir a empresários venezuelanos de vários setores produtivos (têxtil, agrícola, plástico, etc.) um mercado que pode chegar a 412 milhões de dólares. "Isto tem um potencial muito alto. E o impacto na geração de empregos lá na Venezuela é muito maior do que se pode pensar".

Feliz com o fato de que a idéia de uma integração soberana na América Latina e no Caribe já começa a andar, Chávez fez questão de lembrar de figuras como Simón Bolívar e Antonio José de Sucre, que tanto sonharam com esse momento. "Eles não puderam terminar sua obra, mas nós estamos aqui, imbuídos deste espírito".

Uma guerra anunciada?

A soberania conquistada por Chávez e suas vitórias no campo da integração latino-americana estão colocando todo o staff estadunidense em alerta. Secretários de estado voam para lá e para cá na tentativa de manter curtas as rédeas no que diz respeito aos seus comandados. Coisas como a que aconteceu no Equador não podem acontecer. Não foi à toa o recorrido que fez Condoleezza Rice - a senhora arroz, como a chamam os venezuelanos - por vários países vizinhos de Chávez. Na Colômbia, foi dar a bênção ao presidente Uribe que segue colocando em prática o chamado "plano patriótico" de luta contra o terrorismo e o narcotráfico. Qualquer criança de quatro anos sabe que essa ocupação estadunidense na Colômbia tem por trás o domínio sobre a Amazônia e a biodiversidade da região.

No Chile, Condoleezza foi participar de uma tal III Conferência Ministerial da Comunidade de Democracias, sabe-se deus lá o que pode significar isso. Se for algo gerido pelo conceito de democracia estadunidense, pode ser tenebroso para a América Latina, visto que democracia para o governo Bush é ele mandando e o resto obedecendo.

Em El Salvador a senhora Rice foi fazer relações públicas, agradando ao presidente Antônio Saca que é governante do único país da centro-américa a ter tropas no Iraque. E, no Brasil, veio para uma "agenda aberta" que se configurou em palco armado para destilar venenos e ameaças contra a Venezuela bolivariana.

Enfim, foi uma semana quente. Em Cuba, além dos convênios e inaugurações que dão início a caminhada da Alba também aconteceu um grande encontro hemisférico, com a presença de dezenas de militantes dos movimentos contra a ALCA e os TLCs, para traçarem um plano de luta que aqueça o coração de todas as gentes da América Latina e do Caribe. Os EUA ameaçam com guerras e sanções, os povos se organizam e resistem. Ontem, no primeiro de maio, milhões deram o tom da luta. Nada vai ser fácil para a senhora arroz e seus chefes!

* Elaine Tavares é Jornalista e colaboradora da Agência Adital

 

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Quem precisa de Veja?

Por Gilberto Maringoni* - 02/05/05

Veja se autoproclama uma "revista semanal de informação". Para obter sucesso, conta sempre com a falta de informação e de memória alheias. Veja, não nos esqueçamos, apoiou Collor no início. Em dezembro de 1994, chegou a classificar, em matéria de capa, o Plano Real como "O novo milagre brasileiro". Para atacar o MST, não teve dúvidas em adulterar uma foto do líder do Movimento, João Pedro Stédile, ou de falsear informações sobre a luta pela terra.

Atravessado na garganta de Veja está o presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías. Os motivos são basicamente dois. Um é chamemos as coisas pelos nomes ideológico. Veja soma-se ao ódio de fundo pelos nomes, pelos nomes! classista, racista e político devotado ao mandatário venezuelano pela mídia de seu país, que o sataniza ao ponto de concluir tratar-se de um débil mental. A pauta é ditada pela imprensa estadunidense mais conservadora, tendo o Washington Post à frente. Veja acha que Chávez não é democrático. Até aí, é um direito de quem manda na publicação. Estragou uma capa

Mas o ódio de Veja tem por base um outro elemento, mais concreto. Chávez estragou uma capa que deve ter dado muita satisfação à alta direção da empresa da família Civita. Recordemos a chamada de capa do número 1.747, datada de 17 de abril de 2002. A edição fechava na noite de sexta-feira, 12 de abril. Menos de 20 horas antes, a oposição a Chávez composta por membros do empresariado, em aliança com o alto comando das forças armadas, setores da burocracia petroleira e a Casa Branca consumara um golpe que o retirara do palácio de Miraflores, acabando com as instituições democráticas do país. Veja não teve dúvidas. Sapecou na capa a chamada "A queda do presidente fanfarrão".

Na página 45, a revista sentenciava: "Chávez se considerava um Robin Hood bolivariano. Era mais um bufão, que entretinha o povão com programas de televisão em que se portava mais como animador de auditório do que como presidente. Sua queda foi recebida como boa notícia no mundo: melhorou o índice risco-país da Venezuela, a bolsa de Caracas disparou (alta de 8%) e o preço internacional do petróleo caiu 9%".

Todos sabem o resto da história. Quando chegou às bancas, na manhã de domingo, a edição estava para lá de velha. Milhões de venezuelanos nas ruas e uma inédita divisão do exército abortaram o golpe. Veja sequer pediu desculpas aos leitores pela barriga, na semana seguinte. Se os fatos não se ajustam à manchete, danem-se os fatos, parece ser a máxima da direção de Veja. Imperdoável a petulância do mestiço em teimar voltar ao poder e estragar uma manchete do maior semanário brasileiro do mundo!

Condinha paz e amor

Agora, Veja volta à carga na edição desta semana, aliás, primorosa no que revela de sua linha editorial. A capa é eloqüente: "Quem precisa de um novo Fidel?" Encimada pela expressão carrancuda do líder venezuelano, a manchete logo emenda: "Com milícias, censura, intervenção em países vizinhos e briga com os EUA, Hugo Chávez está fazendo da Venezuela uma nova Cuba".

A entrevista das páginas amarelas é com a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice. O tom é todo Condinha paz e amor, como se vê pelo trecho seguinte: "Mesmo quando a missão inclui assuntos mais comezinhos, como as encrencas de Hugo Chávez na Venezuela e as hesitações brasileiras na Alca, Condi tem se saído extraordinariamente bem na Operação Simpatia. Sua espetacular história de sucesso a precede: nascida no coração racista da América, entrou na faculdade aos 15 anos, formou-se aos 19, doutorou-se com 26. Pianista, especialista em relações internacionais e fluente em russo, chegou a reitora de Stanford e, embora negue quase que diariamente, o caminho da Casa Branca é uma possibilidade no horizonte".

Não há encrencas COM Hugo Chávez, mas encrencas DE Hugo Chávez, de acordo com o olho da entrevista. O pingue-pongue pauta a edição. Mas a grande arte está lá pelo meio da revista, sob o espirituoso título "O clone do totalitarismo". Em seis páginas ficamos sabendo, entre outras coisas, o que se segue. Alguns comentários são colocados abaixo de cada trecho.

"Chávez tem um objetivo claro: quer se tornar o grande líder de massas da América Latina, disse à Veja o historiador venezuelano Manuel Caballero, o mais respeitado do país. A revista conta com o desconhecimento dos leitores para fazer afirmações peremptórias. Manuel Caballero, com toda sua longa trajetória acadêmica, só é respeitado na Venezuela pelos monopólios privados da mídia e pelas elites econômicas. Tornou-se um destemperado e folclórico opositor de Chávez, a que volta e meia a imprensa estrangeira recorre em busca de frases bombásticas.

"Chávez dá dinheiro e apoio político e técnico para movimentos de esquerda latino-americanos".

Sequer a CIA consegue levantar uma única evidência de que tal fato esteja acontecendo.

"Venezuela substituiu a União Soviética como patrocinadora do regime castrista em Cuba, fornecendo petróleo e abastecendo o país de bens de consumo industrializados, tudo a preço simbólico ou a fundo perdido".

Não há preço simbólico ou fundo perdido. Há um acordo, firmado em 30 de outubro de 2000, pelo qual a Venezuela fornece a Cuba 53 milhões de barris diários de petróleo metade do que a Ilha consome a preços de mercado, com prazo de carência de até 15 anos. Além de pagar, Cuba compensa as condições de financiamento mediante o fornecimento de serviços médicos, educacionais e esportivos, além de remédios, vacina e açúcar. A íntegra do acordo pode ser lida em: http://www.asambleanacional.gov.ve/ns2/leyes.asp?id=175 Seria bom aos elementos responsáveis pelos textos de Veja darem uma lida antes de mentirem aos seus leitores.

"O presidente venezuelano interfere nos assuntos internos de outros países de várias maneiras".

Quem interfere em assuntos de outros países é o governo dos Estados Unidos. Só Veja, ao que parece, não se dá conta disso.

"Hugo Chávez adotou um virulento discurso antiamericano".

Qualquer pessoa medianamente informada sabe que isso não é verdade. Em várias oportunidades, Chávez afirmou que não tem nada contra os Estados Unidos, mas se opõe ao governo do país e suas práticas imperiais. A verdade é que Chávez tem um discurso antiimperialista.

"Ele diz a toda hora que os americanos querem matá-lo ou estão prontos para invadir o país. Até agora, de real, o que se viu foi o governo de George W. Bush evitar respostas às provocações".

Até agora o que de real se viu foi o governo Bush patrocinar, entre outras coisas, um golpe de estado. Uma recomendação aos redatores de Veja: encomendem o recém-lançado livro "El código Chávez decifrando la intervención de los EE.UU. en Venezuela", da advogada estadunidense Eva Golinger (Fondo Editorial Question, 336 páginas). O volume é resultado de uma exautiva garimpagem em documentos oficiais do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa, obtidos sob o amparo da Lei de Liberdade de Informação (Freedom Information Act). Em suas páginas, a autora desvenda com fartas provas e evidências - as relações entre a entidade conhecida por NED (National Endowment for Democracy) e a oposição venezuelana, incluindo fornecimento de dinheiro e uso de chantagem política e estímulo à violência. É ressaltado ali que o embaixador estadunidense, Charles Shapiro, foi o primeiro a se reunir com o líder do golpe de 2002, Pedro Carmona. E, entre muito mais, o livro detalha com os números de matrícula as embarcações e aviões dos EUA que entraram em águas territoriais venezuelanas, sem autorização, durante o golpe.

"Uma das preocupações americanas decorre de compras de armas em quantidade muito acima do que seria razoável num país cujo Exército tem apenas 35.000 homens. De janeiro para cá, a Venezuela comprou mais de 7 bilhões de dólares em aviões de combate, helicópteros, navios e sistemas de radares. O pacote russo inclui 100.000 fuzis AK-47".

A Venezuela tem investido nas forças armadas principalmente para defender suas fronteiras e para isso os aviões Super Tucanos são ideais. O que tem acontecido na divisa com a Colômbia é uma intensa provocação à Venezuela. As forças armadas do país presidido por Alvaro Uribe são dirigidas, armadas e instruídas pelos EUA, através do Plano Colômbia, - informação omitida por Veja - em seu combate à guerrilha das Farc, que controla 40% do país. A movimentação é clara: empurrar contingentes das Farc para o território venezuelano, na tentativa de se acusar Chávez de acobertar a guerrilha. E, claro, de cumplicidade com o terrorismo, qualificativo utilizado pela Casa Branca para classificar as Farc.

"Em 1958, um pacto garantiu estabilidade política até os anos 90, um dos mais longos períodos de democracia do continente".

Ninguém sério acredita nisso. Em 1958, as elites políticas e econômicas selaram o Pacto de Puntofijo, para criar uma alternância de poder de fachada, enquanto submetia a esquerda e as forças populares a uma duríssima repressão.

A matéria tem muito mais. É impossível dizer onde está a pior parte. É um panfleto, bem ao gosto do que faz na Venezuela a imprensa local. Como ela, Veja não trafega pelos caminhos do apego à realidade. Sua matéria prima é a ficção e a lorota pura e simples. É parte do novo coro golpista que se avoluma contra um governo democraticamente eleito, tendo como repetidores outros órgãos da imprensa brasileira.

Que os Civita façam isso, é papel deles. Mais uma vez chamando as coisas pelo nome é papel de sua classe social. A matéria é assinada por Diogo Schelp, Ruth Costas e José Eduardo Barella. São contratados e fazem o que o patrão manda. Servir bem para servir sempre, parece ser o lema. Talvez acreditem no que escrevam. Mas não deixa de ser deprimente a existência de gente que tope assinar uma peça totalmente editorializada e anti-jornalística, apenas para manter seus proventos no fim do mês.

É certo que a vida anda difícil, mas tem um pessoal que pega pesado.

*Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista da Agência Carta Maior, é autor de "Venezuela que se inventa: poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez" (Editora Fundação Perseu Abramo) e observador, a convite do CNE, no processo do referendo revogatório na Venezuela.

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Combate ao racismo

 

Por Flávia Piovesan* – 18/04/05

Enquanto na África o presidente Lula pedia "perdão" pela escravidão em discurso na ilha de Gorée (Senegal), no Brasil o jogador argentino Desábato era detido sob acusação de ofensas racistas contra o atacante afro-descendente Grafite, em jogo de futebol, na última semana.

Estes fatos suscitam a polêmica a respeito do combate ao racismo no Brasil. Como enfrentar a discriminação racial? Qual tem sido a eficácia do combate ao racismo na experiência brasileira?

Estas questões assumem maior relevância considerando duas peculiaridades do Brasil: o 2º país do mundo com maior contingente populacional afro-descendente (perdendo apenas para a Nigéria) e último país do mundo ocidental a abolir a escravidão. Se se considerar os poucos mais de 500 anos do "(re)descobrimento do Brasil", a população afro-descendente viveu 388 deles em regime escravocrata. Como acentua Abdias do Nascimento, "o povo afro-brasileiro é o povo cujos direitos humanos foram mais brutalmente agredidos ao longo da história do país: o povo que durante séculos não mereceu nem o reconhecimento de sua própria condição humana".

Desde 1968 o Brasil é parte da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, hoje ratificada por 170 Estados. Esta Convenção define a discriminação racial como toda distinção ou exclusão baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha por resultado anular ou restringir o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Isto é, a discriminação racial ocorre quando se elege o critério da raça para impedir o exercício de direitos e liberdades, negando-se ao outro a plena condição de sujeito de direito.

Para a Convenção, qualquer doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa. Exige, assim, dos Estados-partes a adoção de medidas internas que condenem e proíbam a discriminação racial.

Na história brasileira, apenas com a Constituição Federal de 1988, um século após o fim da escravidão, é que ineditamente a prática do racismo passou a ser crime inafiançável, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Posteriormente, a Lei 7716/89 veio a tipificar os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, sendo alterada pela Lei 9.459/97, para também contemplar a injúria baseada em discriminação racial (por exemplo, as humilhações, os insultos e os xingamentos), bem como a punição de atos resultantes de preconceito de etnia, religião ou procedência nacional.

Contudo, até 2001, havia tão-somente 12 condenações criminais por racismo no país. Este reduzido universo de condenações reflete um verdadeiro sistema de "filtragens sucessivas", realizadas pelos aparatos da segurança e da justiça, que, por obstáculos de ordem notadamente ideológica e cultural, tem impedido o efetivo combate do racismo no Brasil. O primeiro desafio atém-se à denúncia do racismo, já que, por vezes, a vítima se cala, a fim de evitar reiteradamente o peso da dor e da humilhação, sendo que há ainda um desconhecimento da população em geral acerca do crime de racismo e de como proceder quando da sua ocorrência. O segundo desafio refere-se ao aparato de segurança, posto que as delegacias carecem de maior sensibilidade para responder à gravidade do racismo, que na prática é ainda considerado um crime de menor relevância.

Daí vem o primeiro recorte, na medida em que a maioria significativa das ocorrências de racismo é arquivada. O segundo recorte vem com o aparato da justiça, quando o Ministério Público acaba também por restringir a propositura das ações penais cabíveis, descaracterizando a crime do racismo, sendo complementado com o terceiro recorte por parte do Poder Judiciário, tendo em vista serem ainda ínfimas as condenações por racismo. Estes recortes sucessivos podem, em parte, ser explicados pela crença no mito da democracia racial, bem caracterizado por sentença proferida no processo 256/93 (8a Vara Criminal de São Paulo), que, em 1994, ao julgar totalmente improcedente ação envolvendo a prática de racismo, argumentou que "no Brasil quase não temos exatamente racismo. Os de pele mais escura são ídolos inclusive dos mais claros no esporte e na música, sendo que mulheres popularmente chamadas de "mulatas" parece que têm orgulho dessa situação e exibem-se com grande sucesso em muitos locais da moda e da fama".

Por isso, a urgência em fomentar a capacitação jurídica voltada ao combate à discriminação racial, a fim de que as diversas instituições e atores sociais (delegacias, promotorias, advocacia, magistratura, dentre outros), possam, com maior eficácia, inclusive mediante a criação de serviços jurídicos especializados, responder à gravidade do racismo, que não pode contar com a complacência do Estado. Nesse sentido, o próprio Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação Racial ressaltou sua preocupação com a reduzida efetividade da legislação brasileira de combate ao racismo, recomendando programas de treinamento para administradores da justiça e agentes aplicadores da lei.

A erradicação da discriminação racial é medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais da população afro-descendente no país. A exclusão social e a discriminação racial surgem como termos interligados, a compor um ciclo vicioso, em que a exclusão implica discriminação e a discriminação implica exclusão, em um contexto de desigualdade estrutural em que os afrodescendentes são 64% dos pobres e 69% dos indigentes (dados do Ipea).

O caso do jogador Grafite revela imenso impacto pedagógico no combate ao racismo e na exigência de respeito à diversidade racial. Contudo, a diligente resposta dada pelos agentes públicos, que aplicaram devidamente a lei, não compõe a regra, mas a exceção – explicada tanto pelo perfil da vítima, como pelo espetáculo televisivo. Com o seu forte significado simbólico, o caso Grafite é capaz de traduzir, sobretudo, a urgência de enfrentar o legado discriminatório, que tem negado à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e liberdades mais fundamentais.

* Flávia Piovesan é professora doutora da PUC-SP nas disciplinas de Direito Constitucional e Direitos Humanos, professora de Direitos Humanos do Programa de Pós Graduação da PUC-SP e do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento na Universidade Pablo Olavide (Espanha), visiting fellow do Programa de Direitos Humanos da Harvard Law School (1995 e 2000), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do Estado de São Paulo.

 

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A esquecida dívida social

Por Márcio Pochmann* – 29/03/05

Embora sempre presente na retórica de políticos, especialistas e do povo em geral, a dívida social, estimada em R$ 7,2 bilhões, não recebe a mesma atenção que a dívida financeira pública. Esta, apesar de 10 vezes menor, conta no governo com equipe gestora, metas e cronogramas claros.

O célebre comentário de Tancredo Neves pronunciado ainda na primeira metade da década de 1980 sobre o fato de o Brasil não poder mais pagar a dívida pública com a fome do seu povo permanece – ainda hoje – atual. Naquela oportunidade, logo no início da transição democrática, diversos especialistas e instituições financeiras buscavam se colocar de acordo a respeito da metodologia de definição do tamanho da dívida pública, enquanto parcela do movimento social reivindicava a auditoria e moratória das dívidas públicas interna e externa.

Uma vez alcançado o consenso sobre o tamanho da dívida pública entre as autoridades governamentais, iniciou-se o longo calvário de reorganização do setor público para poder atender ao recorrente e crescente conjunto de interesses dos credores financeiros do Estado brasileiro. Com Sarney, por exemplo, foram dados os primeiro passos, por intermédio do fim da Conta Movimento no Banco do Brasil e da criação da Secretaria do Tesoura Nacional (STN) subordinada no Ministério da Fazenda.

Em síntese, houve aperto da torneira que viabilizava recurso público rápido e fácil ao sistema financeiro com o fim da Conta Movimento, enquanto a STN assumiu maior centralidade na coordenação da receita e do gasto do setor público. Dessa forma, a reorganização das finanças governamentais voltou-se ao atendimento da dívida pública.

Após marchas e contra-marchas, como a moratória técnica da dívida externa, em 1987, e o aprisionamento dos recursos aplicados no sistema financeiro, em 1990 com o Plano Collor, a musculatura do setor público terminou sendo novamente revigorada com o intuito de melhor atender aos credores da dívida pública. Já nos preparativos do Plano Real, em 1994, a equipe econômica em alta, introduziu a contenção sistemática do gasto social, por conta da desvinculação de parte das receitas direcionadas ao financiamento da saúde, assistência, previdência, educação e trabalho, bem como prolongou a criação do Orçamento da Seguridade Social definida pela Constituição de 1988.

Assim, os titulares da dívida pública passaram a ter mais e melhores garantias materiais de que não faltariam recursos públicos. Ademais, houve ainda a continuidade da drenagem das finanças públicas para os credores da dívida por meio da privatização do setor produtivo estatal, da elevação da carga tributária sobre a população mais pobre, da terceirização e do arrocho da remuneração dos funcionários e, ainda, da legislação que estabeleceu um freio ao maior gasto orçamentário, como a Lei Camata na despesa de pessoal e a Lei de Responsabilidade Fiscal na despesa sem cobertura fiscal.

Por fim, um novo impulso foi dado em relação à segurança de recursos públicos necessários ao atendimento das famílias ricas que colocam parte crescente de sua riqueza na ciranda financeira. A implementação das metas de inflação e de superávit fiscal indica inquestionavelmente o quanto a política macroeconômica encontra-se comprometida com a sustentação do ciclo da financeirização da riqueza no Brasil.

Em outras palavras, os governos constituíram coordenação na área econômica, com equipe gestora dos esforços de todas as áreas para atender às exigências do endividamento público, apresentando, inclusive, metas e cronogramas claros para não deixarem dúvidas a respeito da predisposição final de atender fielmente os compromissos financeiros firmados.

Em contrapartida, a dívida social, embora quase sempre presente na retórica de políticos, especialistas e do povo em geral, deixou de apresentar a mesma performance quando comparada com a dívida financeira pública. Ainda hoje não há metodologia oficial reconhecida para o dimensionamento da dívida social no Brasil.

Ao mesmo tempo em que se desconhece o seu tamanho, parece desconsiderar-se a necessária reorganização da gestão da área social, que tem permanecido sem instituição que lhe dê centralidade – em paralelo com a dívida pública que se expressa pela Secretaria do Tesouro Nacional. Sem explicitar coordenação e equipe voltada à matricialidade e à intersetorialidade das ações, a área social deixa de apresentar metas oficiais e cronogramas globais, com compromissos explicitados de recursos públicos e privados suficientes para saldar a dívida social existente.

Sobre isso, aliás, nem se fala, por exemplo, de uma Lei de Responsabilidade Social. Uma legislação desse tipo poderia, por exemplo, estimular o comprometimento de gestores públicos e de toda a sociedade com uma possível meta oficial de inclusão social.

No quinto livro da série Atlas da Exclusão Social publicada pela editora Cortez (Agenda não liberal da inclusão social no Brasil) localiza-se uma metodologia de dimensionamento da atual dívida social no Brasil, ao mesmo tempo em que apresenta um cronograma com metas de ações socioeconômicas fundamentais. De acordo com as estimativas de parte dos pesquisadores que organizaram o livro, o Brasil registrou, em 2004, uma dívida social de 7,2 trilhões de reais, ou seja, quase 10 vezes a atual dívida financeira pública.

Enquanto permanecer em moratória - não declarada - o pagamento da dívida social, tende a ficar em segundo tanto plano o necessário redesenho do atual padrão de gestão de políticas públicas como a relocalização de recursos adicionais para a área social. Não causa surpresa, por conta disso, que o Brasil corre o sério risco de chegar, em 2020, com situação socioeconômica não superior a verificada nos dias de hoje.

* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.

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Os assinantes pagam, Veja mente

Por José Arbex Jr. – 21/03/05

Em sua edição de 5 de março, a revista - ou melhor, panfleto da direita racista tupiniquim - volta a produzir injúrias, calúnias e difamações contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com a "reportagem" intitulada "Nós pagamos, eles invadem". O panfleto acusa o MST de desviar "milhões de reais" fornecidos pelo governo para implementar a reforma agrária. O dinheiro "desviado" seria utilizado para promover novas "invasões". Além disso, Veja publica depoimentos de supostos ex-integrantes do MST que denunciam a cobrança de taxas ilegais a todos os assentados por parte da direção nacional do movimento. Irados com tamanha injustiça, os ex-militantes queimam a bandeira do MST, produzindo um indisfarçado orgasmo nos autores da "reportagem", feita no assentamento Baixio do Boi, no município de S. José de Belmonte, sertão central de Pernambuco.

E a Veja mente de novo

Primeiro, vem a questão dos "dissidentes irados". No assentamento vivem 190 famílias, cerca de 800 pessoas. Destas, apenas 10 participaram do "protesto", liderado por um certo Francisco, ex-técnico agrícola dos assentados. Outros que acompanhavam o evento não tinham qualquer relação com o MST. O que a revista não conta, explica Jaime Amorim, da direção do movimento, é que há cerca de 6 meses o tal Francisco foi demitido pelo MST, por suspeitas de desvios de dinheiro do Pronaf e má conduta. Atualmente, o tal Francisco sofre processo do Banco do Nordeste, por desvio de dinheiro. Ou a Veja não sabia disso, e portanto é incompetente, ou sabia e ocultou a informação, e portanto é criminosa.

Depois, vem a acusação da suposta "cobrança ilegal de taxas". Essa é velha. A lebre foi levantada, no ano 2000, pelo suposto "jornalista" Josias de Souza, da Folha de S. Paulo, posteriormente obrigado a admitir ter feito a sua "reportagem" sob os auspícios do governo Fernando Henrique Cardoso, que chegou a ceder automóveis e orientação técnica para a produção de um trabalho realmente "independente" de jornalismo. Na época, o MST esclareceu exaustivamente que qualquer cooperativa, em qualquer parte do planeta Terra, cobra um taxa mínima de seus associados, como condição básica de subsistência.

Por fim, vem a acusação de "desvio de verba" para promover "invasões". Francamente, o assunto chega a ser tedioso e não merece sequer ser comentado. Os editores do panfletão acham estranho o governo ceder verbas a um movimento social que agrega 300 mil famílias de trabalhadores rurais em todo o país e que mantém escolas, atendimento de saúde, treinamento profissional, assistência técnica e outros serviços públicos. Só para mero efeito de comparação: em 2003, a Anca (acusada pela Veja de receber dinheiro público indevido) obteve do MEC R$ 3.424.608,00 para promover o seu programa de alfabetização de 35 mil sem-terra adultos, em acampamentos e assentamentos, alguns situados em áreas tão inóspitas que não são servidos por qualquer infra-estrutura estatal. Pois bem: no mesmo período, a entidade dirigida pela ex-primeira-dama Ruth Cardoso (Alfabetização Solidária) recebeu R$ 33.966.900,00 e o Sesi, R$ 27.680.400,00; ao Instituto Riomafrense do Bem Estar do Menor, entidade nível municipal do Paraná, foram destinados R$ 6.193.440,00.  Nada disso merece atenção dos honestos editores do panfletão.

Curiosamente, a revista - também repudiada pelo PT, a quem acusou sem provas de ter recebido verbas das Farc colombianas para promover a campanha eleitoral de 2002 - nada diz quanto aos recursos bem mais vultuosos endereçados pelo governo aos cofres da família Civita, a título de pagamento por anúncios publicitários e aquisição de assinaturas de publicações do Grupo Abril. Seria muito interessante promover uma CPI para investigar as relações entre os vários governos e os donos do Grupo Abril, e mais ainda investigar o destino que a família Civita dá ao botim.

Vejamente, eis tudo. De nada adiantou, ao que parece, a revista ter sido condenada por injúria, calúnia e difamação, por "reportagem" semelhante, publicada na edição de 10 de maio de 2000, intitulada "A tática da baderna". Na época, João Pedro Stedile entrou com processo no Fórum da Lapa, e ganhou em primeira instância. Apostando na morosidade da Justiça, a revista recorreu. O processo ainda tramita, mas moralmente a revista foi conduzida ao seu lugar: a lata de lixo da história. Os assinantes da revista, aliás, deveriam fazer um movimento para exigir de volta o seu dinheiro, por receberem notícias falsas e ainda por cima requentadas. Fica a sugestão: aproveitem como mote o lema "nós pagamos eles mentem".

José Arbex Jr. é editor da revista Caros Amigos e escreve também para o jornal Brasil de Fato. Colaborou Hamilton Octavio de Souza.

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Veja faz campanha contra a Reforma Agrária

Por Sérgio Domingues e Vito Giannotti* - 18/03/05

A edição da revista mais conservadora do País foi às bancas no dia 6 de março. O título da matéria é explícito: "Nós pagamos, eles invadem". Abaixo do título, uma charge de João Pedro Stedile ordenhando uma vaca verde-amarela sobre um balde com o símbolo do MST, cheio de militantes tomando o leite que cai das tetas do animal.

A reportagem de André Rizek diz que "O MST nunca recebeu tanto dinheiro do governo. E agora é investigado por suspeita de usá-lo para financiar invasões". Rizek alega que o MST viu secarem suas fontes de financiamento quando os doadores europeus voltaram sua atenção para o Leste Europeu nos anos 90. Além disso, a causa por que luta teria sofrido um esgotamento, já que nasceu apoiada no combate "aos – hoje praticamente inexistentes – latifúndios improdutivos". Esses dois fatores teriam provocado "um esvaziamento do movimento". E isso teria feito com que o MST fosse empurrado "para uma direção inédita: os braços do Estado".

O artigo da Veja, como sempre, mistura fatos com interpretações e, sobretudo, opiniões que refletem sua linha política e ideológica conservadora. É fato que o apoio internacional aos movimentos populares se deslocou, hoje, do Brasil para outras áreas do mundo. Mas quem disse que hoje as terras e latifúndios improdutivos são quase inexistentes? E, sobretudo, por que a Veja silencia que milhões de hectares de terra que ela, alegremente, chama de produtivas são terras devolutas, terras sem dono.

Quanto ao que a Veja define como uma queda do MST nos braços do Estado, essa é outra afirmação ideológica.

O MST exige, com centenas de ocupações, que o Estado cumpra seu papel de implementar a reforma agrária. O que o MST exige e em parca medida recebe do governo não é nem um milésimo do que o agronegócio recebe de mil formas do mesmo governo. As maneiras do chamado agro-business aumentar seus lucros são tantas: ferrovias feitas especialmente para escoar seus produtos, portos, isenções e incentivos, estoques regulatórios, apoios técnicos e toda a parafernália de artifícios para financiar o capital.

Para a Veja, isso é legítimo. Seu interesse é convencer seu milhão de assinantes que o MST é o vilão, o bandido e deve ser processado.

* Sérgio Domingues e Vito Giannotti são membros do Núcleo Piratininga de Comunicação.

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O que diz a PEC Paralela

Por Antônio Augusto de Queiroz* - 17/03/05

O substitutivo da Câmara à Proposta de Emenda à Constituição nº 227/2004, conhecida como PEC Paralela da Previdência, após aprovação em dois turnos pelos deputados, retorna ao Senado, onde tramitará sob o nº  77/2003. A PEC paralela foi concebida pelo senador Paulo Paim (PT/RS), negociada pelo senador Tião Viana (PT/AC), relator da Reforma da Previdência no Senado,  e apresentada pela então líder do PT no Senado, senadora Ideli Salvatti (SC), para amenizar os efeitos perversos da Reforma da Previdência sobre o funcionalismo. O Senado, que impôs como condição para votação da Reforma da Previdência a aprovação de uma PEC Paralela com regras de transição menos draconianas para os atuais servidores, deve votar a matéria rapidamente, no máximo em dois meses.

A PEC Paralela, em relação à Reforma da Previdência (E.C. 41), traz modificações importantes para os atuais servidores, especialmente no que diz respeito: i) à integralidade, ii) à paridade, iii) à  transição, iv) ao subteto, v) à contribuição de inativo, vi) à aposentadoria especial, vii) à contribuição da empresa para o INSS, e viii) à inclusão previdenciária.

Integralidade – Garante aposentadoria integral e paridade plena ao servidor que, tendo ingressado no serviço público até 31/12/2003, preencher os requisitos da Emenda Constitucional 41 (35 ou 30 anos de contribuição, se homem ou mulher, 60 ou 55 de idade, 20 anos de serviço público, sendo dez na carreira e cinco no cargo). Revoga o § único do art. 6º da E.C. 41.

Paridade geral – Assegura paridade plena a todos os servidores que, tendo ingressado no serviço público até 31/12/2003, preencherem as exigências para aposentadoria integral (item anterior). Dizendo de outro modo, estende a paridade plena do art. 7º da E.C. 41 aos servidores que se aposentarem com base no art. 6º da própria E.C. 41.

Paridade das pensões – Fica assegura a aplicação da regra de paridade plena, constante do art. 7º da E.C. 41, de 2003, às revisões de pensões derivadas de proventos de servidores falecidos cujas aposentadorias tenham sido concedidas com base na regra de transição abaixo.

Regra de transição geral - Possibilita ao servidor que ingressou no serviço público até 16 de dezembro de 1998 se aposentar integralmente e com paridade plena antes da idade mínima exigida na Emenda Constitucional 41, desde que tenha pelo menos 25 anos de serviço público, 15 na carreira, dez no cargo e comprove tempo de contribuição acima do exigido, no caso de 30 anos para a mulher e de 35 para o homem. Para cada ano que o servidor exceder no tempo de contribuição, ele poderá reduzir ou abater um ano na idade mínima. É a conhecida regra 95 para os homens ou fórmula 85 para as mulheres, que poderá ser alcançada com a soma da idade com o tempo de contribuição. Exemplo: homem 59/36, 58/37, 57/38; 56/39, 55/40 etc.

Professores na regra de transição – A regra de transição também se aplica aos professores e professoras da educação infantil e do ensino fundamental e médio. A idade mínima do professor, 55 anos, e da professora, 50 anos, poderá ser reduzida em um ano sempre que for comprovado um ano de contribuição além do mínimo exigido (30 para o homem e 25 para a mulher), desde que o professor ou professora comprove 20 anos de serviço público efetivos exercidos exclusivamente nas funções de magistério na educação infantil ou fundamental ou médio.

Teto nacional - O teto nacional de remuneração e proventos no serviço público, que exclui apenas as parcelas indenizatórias previstas em lei, será equivalente ao subsídio de ministro do Supremo Tribunal Federal, correspondente, em valores de dezembro de 2004, a R$ 19.170,00, podendo chegar a R$ 21.500,00 em 2005 e R$ 24.500,00 em 2006, se aprovado o projeto do Supremo Tribunal Federal que define o novo teto nacional.

Subteto 1 nos Estados – O subsídio de governador, que é fixado como maior remuneração paga ao servidor estadual, será de, no mínimo, 50% do maior salário de Ministro do Supremo Tribunal Federal.  Possibilita, ainda, que Emenda à Constituição Estadual possa fixar subteto estadual em valor igual ao subsídio de desembargador, que equivale a 90,25% do subsídio de ministro do STF.

Subteto 2 nos Estados – As carreiras de procuradores, advogados, defensores,   membros do Ministério Público e agentes fiscais tributários ficarão vinculadas ao subteto de desembargador, que corresponde a 90,25% do subsídio de Ministro do STF.

Subteto nos Municípios - A PEC Paralela cuida apenas do subteto nos Estados e no Distrito Federal, mantendo inalterado o texto da Emenda 41 em relação ao subteto Municipal. E, de acordo com a Emenda Constitucional 41, com exceção do Procurador Municipal, a maior remuneração percebida por servidor municipal, cumulativa ou não, não poderá ser superior ao subsídio do Prefeito, que por sua vez não poderá exceder ao subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Contribuição de Inativo -  O aposentado ou pensionista do serviço público que for portador de doença incapacitante, nos termos de lei, ficará isento de contribuição para a previdência até o dobro do teto do INSS, algo equivalente, em valores de dezembro de 2004, a R$ 5.017,00. O aposentado ou pensionista, em gozo de benefício na data de promulgação da PEC Paralela, que seja portador de doença incapacitante também terá isenção em valor correspondente ao dobro do teto de INSS.

Aposentadorias Especiais - Assegura aposentadoria especial, nos termos de lei complementar, para os portadores de deficiência, para os servidores que exercem atividade de risco (policiais) e para os servidores cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem à saúde ou à integridade física.

Contribuição da Empresa para o INSS – Modifica o § 9º do art. 195 da Constituição Federal para permitir que a contribuição do empregador para a Previdência Social (INSS) possa ter base de cálculo e alíquota diferenciada em razão não apenas da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra, mas também do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho.

Inclusão Previdenciária – Lei disporá sobre sistema especial de inclusão previdenciária, com alíquotas e carências inferiores às vigentes para os segurados em geral, destinado a atender trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda própria, desde que pertencentes a famílias de baixa renda, que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico, garantido-lhes o acesso a benefício de valor igual a um salário mínimo.

Vigência da PEC Paralela – Emenda dos deputados Carlos Mota e Drª Clair, aprovada na Câmara, determina que a vigência da PEC Paralela será retroativa a 31 de dezembro de 2003, data da promulgação da E.C. 41, da Reforma da Previdência, beneficiando todos os servidores que ingressaram no serviço público após a reforma da Previdência do Governo Lula.

* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e Diretor de Documentação do DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. Também é assessor parlamentar da Fenajufe.

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Godard e a Globo pornográfica

Por Glória Reis* - 03/03/05

Alguns leitores da minha geração devem se lembrar da polêmica na imprensa, nos anos 80, quando o filme "Je vous salue, Marie", de Jean-Luc Godard, foi proibido no Brasil, sob a alegação de que era uma ofensa à religião católica.

Durante dias e dias foi assunto na imprensa. Naquela época se discutia cultura na mídia. Não é essa mesmice de hoje, em que só se fala de politicagem, guerra, Bush, desfile de moda e casamento de jogador de futebol.

Os leitores acompanhavam o tema, escreviam cartas aos jornais e os colunistas tratavam do tema ardorosamente.

Numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo, perguntaram a Godard o que achava da proibição do seu filme no Brasil e sua resposta foi inusitada:

- Não estranho a censura ao meu filme e sim por que não censuram a TV Globo porque, ela sim, é pornográfica.

Quando li a entrevista, o que mais me surpreendeu foi o fato de um francês, tão distante do Brasil, ter essa informação dos malefícios de um canal de televisão em outro país. E, principalmente, tratando-se de um fato do qual nem os próprios brasileiros se dão conta.
Hoje, ao assistir alguns episódios da novela Senhora do Destino, fico me lembrando de Godard e do seu sábio conselho, que, infelizmente, nunca foi seguido em nosso país.
Reina uma ditadura do "vale-tudo" nos meios de comunicação.

Não há regras, que é a base da democracia. Regras, respeito, ética, principalmente aos que "fazem a cabeça do povo". E, como sabemos, a Globo seria a primeira a dar o exemplo. Mas ao contrário, ninguém ousa mexer com a deusa platinada. E por isso, ela abusa. Deita e rola. É como uma criança mimada que sabe o quanto tem o poder nas mãos, o quanto todos a temem.

A "liberdade de expressão" é a nossa vaca sagrada. Como na Índia, pode passear à vontade pelas ruas, perturbar o trânsito e a vida das pessoas, mas não se pode tocar nela, mesmo que, de sagrada e liberdade não tenha nada.

A Globo cada vez mais se excede, tirando proveito do seu posto de monopólio, totalmente alheia ao "tsunami" que provoca na cultura do nosso povo. Perdeu a noção de limites, numa ostensiva demonstração daquilo que José Saramago disse: "acabaremos por cair num organismo autoritário dissimulado sob os mais belos parâmentos da democracia."
Certa vez li uma frase, não me lembro de quem: "fascismo não é só impedir de ver, é também obrigar a ver". Estamos, então, sob o fascismo da Globo. Ela nos obriga a ver. Não me venham com esse clichê de que se pode mudar de canal. É mais uma forma elitista de encarar a questão. Muda de canal quem tem opção, uma delas a tv paga. Não se trata do que eu vejo, do que expectadores esclarecidos vêem, mas sim do que é oferecido ao povo sem bula, sem apontar as contra-indicações que, no caso da Globo, podem levar este país a um efeito mortal dos nossos valores culturais, morais e éticos.

Como todo engano um dia chega ao fim, só nos cabe detectar o calcanhar de Aquiles que desencadeará o fim do abuso. Como no episódio de Godard, só lá fora é que vão provocar um exame de consciência na Globo pornográfica.

A censura virá de outros países, talvez em forma financeira - a única a que ela é sensível - não comprando mais suas produções abusadas. Aí, sim, ela vai se perguntar: "Onde foi que errei? ". Soube que a mini-série "Os Maias" foi um fracasso em Portugal, entre outras razões, por terem alterado a bel prazer o maravilhoso enredo de Eça de Queiroz. Aqui no Brasil, os meios de comunicação podem tudo, não há mecanismos de defesa ao alcance da população.

Acredito que chegaremos a um ponto de exaustão. Mas para o povo, já será tarde demais. Gerações já terão proliferado sob o efeito das novelas tendenciosas, pornográficas e violentas, da idiotia dos big brothers, do famigerado Casseta e Planeta e tudo o mais que se escancara, sem nenhum cuidado com a responsabilidade social, marca imprescindível de uma empresa que recebe concessão do governo para atuar junto à população.
Hoje se brada tanto em limites na educação de nossas crianças e adolescentes. Por que não limite aos adultos? Por que não aos meios de comunicação? Por que não à Globo?

* Glória Reis é professora, autora do livro "Escola, instituição da Tortura" e colaboradora do site Usina de Letras.

 

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A cultura e a comunicação sob a tirania do mercado

Por Márcia Cristina Pimentel * - 24/02/05

Os produtos jornalísticos relacionados aos temas da subjetividade e da vida privada dos indivíduos estão cada vez mais em pauta. Em especial quando o foco recai sobre aqueles que, através de estratégias de comunicação, se transformaram nas ditas "celebridades". Esta tendência à mistura de notícia com entretenimento, assessoria de comunicação com jornalismo, e que acompanha as regras do mercado de consumo, tem se revelado como uma perigosa mordaça ao mundo ético e à diversidade. Tal constatação nos atenta, ainda, para o risco de podermos estar caminhando para uma ditadura estética, expressiva e comunicacional.

Nessa segunda-feira (21/2), embora o país estivesse sofrendo a rebordosa da morte da irmã Dorothy e da eleição de Severino para a câmara federal, a primeira página do jornal carioca 'O Dia' estampava manchete, de meia página, que tratava de mais um capítulo do reality folhetim 'O casamento', protagonizado pelo ator-personagem Ronaldinho.

A grande manchete era só fuxico. Envolvia revelações da última 'ex' do protagonista, além de outras considerações sobre a 'atual', feitas pela modelo que representou o papel de 'a barrada no baile'. A tendência à construção de pautas voltadas à subjetividade ao estilo folhetinesco, contudo, não pode ser creditada apenas ao universo popularesco. A revista 'Você S/A' está aí para mostrar que empresários e altos executivos também querem se transformar em personagens do mundo midiático, a fórmula contemporânea de promoção pessoal mais eficaz.

Toda essa exposição da vida privada e do mundo subjetivo vem sendo impressionantemente acelerada e aprofundada pelo pensamento neoliberal. Cada vez mais, ela parece contaminar com a estética do folhetim as representações - e não só as de massa - que vêm sendo submetidas à lógica mercadológica, muito embora o atual estágio de organização da sociedade e do mundo não prescinda das informações objetivas. Ainda pelos estatutos do neoliberalismo, muito mais vale a projeção pessoal e sua transformação em personagem folhetinesco do que a tentativa de mudar a realidade. Esta é melhor ficar como está.

A modelo que fez o papel de 'a barrada no baile' é mais uma a atestar esta verdade. Apenas dois dias após o enlace matrimonial espetacular de Ronaldinho, o sítio virtual 'Uol' registrava que seu cachê já tinha aumentado em 900%. Isto porque ela foi o pivô da cena que mais rendeu 'babados' e audiência, dentre todas as demais cenas do espetáculo 'O casamento'.

Para garantir a sobrevivência da lei e dos seus paradigmas de representação, paparazzi e jornalistas de plantão se postam dia e noite na sombra das personagens 'reais', a fim de continuar a trama dos seus diversos reality folhetins. É necessário mostrar que a ascensão social é possível, desde que o indivíduo aceite a lógica do fetiche, pois ele é uma das maneiras mais eficientes de agregar valor a qualquer mercadoria, inclusive a humana. Pois o que me parece acontecer é que essa lógica educa para a questão de que, hoje, não basta apenas alienar a força de trabalho, mas a si próprio.

Os autores da nova tendência folhetinesca, na busca de informações sobre suas personagens-fetiche, arriscam-se, inclusive, a levar socos de namorados raivosos, o que os leva a evocar a liberdade de imprensa, com o irrestrito apoio do veículo para o qual trabalha. Inclusive o das entidades de classe, sempre a defenderem o direito ao trabalho, ainda que o código de ética da categoria seja claro quanto à conduta de "respeitar o direito de privacidade do cidadão". A revista 'Contigo' tem, inclusive, chamado esta busca pelo desvelamento do mundo privado das "celebridades" de "jornalismo investigativo". Jornalistas conhecidos do grande público também dizem que esse tipo de jornalismo é "muito natural", pois é isso "o que o povo quer", é uma "questão de mercado".

A crise ética

O jornalista e professor Bernardo Kucinski, em seus 'Ensaios sobre o colapso da razão ética', observa a atual tendência de não-aceitação de um código de ética pela categoria jornalística e veículos de comunicação por ele contrariar as regras mercadológicas e os valores do individualismo, tão marcantes na contemporaneidade. Quando se trata da mídia gerar matérias com informações objetivas, há ainda de se lembrar outra questão levantada por Kuncinski; a de que a corrupção se tornou numa "prática sedutora na indústria da comunicação" pelo fato dela combinar "o poder de influenciar politicamente a opinião pública com o poder econômico".

Ao final de tudo, o que nos parece efetivamente acontecer, é que a hegemonia do pensamento neoliberal não tem permitido, na práxis, outras manifestações da representação que não sejam as suas, sob a pena de se ser expurgado e massacrado pelo mercado. Isto vale tanto para veículos como para profissionais. Na verdade, a regra da submissão ao mercado, não submete apenas o econômico em função da necessidade de sobrevivência. Submete a própria existência. Tudo e todos ficam condenados à lógica do seu pensamento mercadológico, esvaziando e anulando, inclusive, as individualidades, as expressões e as outras formas de representação.

Da mesma maneira que o jornalismo crítico, o teatro também se vê cada vez mais inserido numa camisa de forças, em função da sua fusão com o entretenimento e consumo, esvaziando, de forma preocupante, a essência desta arte. Tal como vem acontecendo com o jornalista, o ator também vem abandonando todos os parâmetros éticos e utópicos, inerentes a qualquer projeto estético e poético, por contingência da sobrevivência e das leis do mercado.

Luiz Carlos Moreira, um dos integrantes do movimento paulista 'Arte contra a Barbárie', em um de seus escritos, mostra bem o que vem acontecendo com o ator de teatro. Este, agora, tem que saber dançar, cantar, sapatear, rodopiar, assoviar, fazer drama, tragédia, comédia, enfim, tem que traçar o que vier pela frente para garantir o pagamento do aluguel no mês seguinte. Para sobreviver, ele hoje pode se inserir "num pacote que vem da Broadway, amanhã numa peça que prega a revolução comunista", e depois de amanhã "num comercial do banco Itaú". É um 'artista' sem nenhuma arte, pois não tem projeto estético. Ele é apenas um profissional.

No abandono da essência de seu ofício, os atores, tal como os jornalistas, parecem se conformar à função do técnico. Transformaram-se naqueles profissionais que sabem reproduzir o projeto de qualquer engenharia cultural, de comunicação ou entretenimento, estejam tais projetos coadunados com a sua visão de mundo, ou não. Os sujeitos do mercado e aqueles cooptam com suas proposições, parecem, assim, esvaziar, deteriorar, destruir todos os sonhos e utopias que não se vinculem ao consumo, à casa própria, à sobrevivência. Ao impor a sua lógica, impõe junto uma ditadura expressiva, estética e representacional, ou melhor, transforma o campo da cultura e da comunicação em mera reprodução de suas forças. E os indivíduos em meros instrumentos dessa reprodução.

* Márcia Cristina Pimentel é jornalista, atriz e escreve para o site La Insígnia.

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Como não cometer os mesmo e velhos erros?

Por Márcio Pochmann * – 21/02/05

O novo governo do Uruguai nem tomou posse ainda, mas já produziu matéria de fazer inveja a outros governantes do continente latino-americano. Desde a sua campanha eleitoral, em 2004, o então candidato Tabaré Vasquéz notabilizou-se por buscar a aglutinação de diferentes segmentos sociais em torno da construção de uma agenda voltada para o desenvolvimento social e econômico do Uruguai.

Para isso, assumiu como ponta de lança de um novo horizonte nacional, a consideração e recomposição dos segmentos sociais mais diretamente afetados pelo vendaval do neoliberalismo. Imediatamente após a eleição, já em plena etapa de formação da equipe de governo, o presidente eleito inovou novamente ao antecipar a agenda do desenvolvimento, como forma de aprofundar o diagnóstico e oferecer alternativas viáveis de execução com distintos integrantes da sociedade.

Muitas oficinas de discussão têm sido realizadas nas mais diferentes áreas. Nos dias 31 de janeiro e 1 de fevereiro do corrente ano, por exemplo, ocorreu uma dessas oficinas voltadas para o redimensionamento do projeto de desenvolvimento nacional, a partir das análises das experiências latino-americanas de adoção de políticas de emergência social.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (ONU), convocado pela senadora e também indicada para o novo Ministério do Desenvolvimento Social Marina Arismendi, organizou um excelente encontro internacional com antigos e atuais gestores de programas sociais de emergência adotados em países como Argentina, Brasil, Chile, Cuba e México. Durante dois dias, diversos membros da equipe do novo governo do Uruguai (ministros, secretários executivos e técnicos), que somente tomam posse no dia 1 de março próximo, tiveram a oportunidade de fazer uma verdadeira sabatina a respeito da estratégia, execução e conteúdo dos diferentes programas de emergência social adotados nos países latino-americanos. Diante da diversidade da materialidade das políticas sociais, em que uma parte importante dos países latino-americanos segue a norma neoliberal das agências multilaterais de complementar renda, há que se separar o joio do trigo. Como se sabe, a década de 1990 foi, sobretudo, o período das reformas neoliberais, cujos resultados em termos sociais, especialmente no emprego foi uma catástrofe, mesmo em países com indicadores positivos de crescimento econômico.

Com a insustentabilidade dos regimes democráticos frente às políticas de liberalização comercial, produtiva, financeira, tecnológica e laboral, que levam ao aprofundamento da polarização social entre rico e pobre, com forte enxugamento das classes médias, ganhou ênfase a formação de uma nova aliança política entre os segmentos muito ricos e os muitos pobres. Na maior parte das vezes, a nova maioria vencedora tratou de compatibilizar programas de racionalização de gastos nas políticas universais como educação, saúde, habitação e transporte, geralmente defendidas pelos segmentos organizados da sociedade, como forma de viabilizar tanto a renda mínima a ganhadores do circuito da financeirização da riqueza, por intermédio das transferências financeiras, com altas taxas de juros, como a renda mínima a segmentos muito pauperizados. Sem emprego e perspectiva de mobilidade social, salvo aquela oferecida pela ilegalidade da prostituição, da criminalidade, tráfico humano e de drogas, certas agências multilaterais apóiam programas de complementação condicionada de renda.

De acordo com os participantes da oficina realizada no Uruguai, os programas de transferência de renda variam entre 1% (México) a 0,3% (Brasil) do Produto Interno Bruto. Com distintas ações e funções há detalhes importantes a serem feitas entre os programas do México e Chile e os da Argentina e Brasil, por exemplo. No primeiro grupo de países, os programas encontram-se mais próximos da ideologia neoliberal da focalização de recursos, enquanto no segundo, os programas estão um pouco mais distantes disso.

Diferenças mesmo em termos de objetivos voltados para a emancipação social e política, em que a política econômica transforma-se em parte integrante das ações integradas e matriciais de operacionalidade, foram localizadas nos programas de Cuba e da Prefeitura de São Paulo (2001 a 2004). Em síntese se tratam de ações governamentais que envolvem a inversão de prioridade, com o gasto público a serviço do avanço da infra-estrutura física no território em que se concentra o conjunto da população mais pobre. Por não se referirem a programas direcionados de pobre para pobre - que se distanciam da inclusão social -, os resultados apresentados em Cuba e no município de São Paulo convergiram com a perspectiva efetiva de enfrentamento da exclusão social em novas bases. Nesse mesmo sentido parece seguir as ações do governo de Chávez na Venezuela, com amplas programas matriciais nas áreas da saúde, educação, infra-estrutura, emprego, entre outras. Bem, mas isso é algo para ser tratado em outra oportunidade.

Em resumo, as informações aqui apresentadas apenas indicam a correta preocupação do novo governo de Uruguai em não procurar cometer os mesmo e velhos erros, que tradicionalmente acompanham as gestões públicas na área social, especialmente aquelas oriundas da linha política de centro-esquerda. O governo Lula, por exemplo, parece ter aprendido pouco sobre isso, uma vez que deixou em segundo plano o aprendizado acumulado desde 1982 nas experiências municipais e estaduais exitosas na área social. Ao contrário da área econômica, que tem equipe e coordenação, com metas e cronogramas, a área social segue o jogo incerto e errôneo da ausência de coordenação do conjunto da área social. Sem diagnóstico comum, opera, na maioria das vezes, sem metas e cronogramas, em meio à lógica da competição interburocrática, em que a soma das partes não resulta necessariamente num todo maior.

Conforme o governo uruguaio, o novo ministério do desenvolvimento social não representa mais um ministério, mas sim a institucionalidade governamental necessária para a integração e matricialidade dos programas de emergência social no conjunto do governo. Para atender aos segmentos sociais desfalecidos pela política neoliberal, há uma emergência da ação pública que, ao reconhecer a sua existência, buscará oferecer o atendimento cidadão de curto e longo prazos. Este primeiro momento da política pública deve contemplar imediatamente a semente da emancipação social, política e econômica. Ainda conforme a futura ministra do Desenvolvimento Social, os excluídos devem ser também os protagonistas das políticas sociais, não meros repositórios passivos, quando não clientelas do dependentismo político e paternalista, a que têm sido continuamente submetidos por políticas sociais estigmatizantes, conduzidas pelos princípios individualistas do neoliberalismo predominante na América Latina.

É nesse contexto que o novo governo do Uruguai poderá deixar de cometer velhos erros. Ao longo deste ano, o acompanhamento de sua performance dirá o quanto isso deixou de se uma retórica para se transformar em realidade efetiva.

* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.

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