Por Elaine Tavares * – 04/05/05
Os acontecimentos das últimas semanas fizeram com que os olhos do mundo se voltassem para a América Latina e, desta mirada, muita coisa se pode colocar sob a luz da análise. O povo equatoriano em rebelião botou para correr o presidente Lucio Gutiérrez, que ousou descumprir o pacto feito com a população durante o levante de 2000. Dolarizou a economia, rendeu-se ao Tratado de Livre Comércio com os EUA, garantiu “através da nomeação de juízes da Suprema Corte” a volta de dois ex-presidentes depostos pelo povo e apoiou o Plano Colômbia. Lula ofereceu ajuda e mandou um avião buscá-lo. Dias depois, a toda poderosa secretária de estado dos EUA, Condoleezza Rice, veio ao Brasil, passando por Chile, Colômbia e El Salvador como que a lembrar que é preciso que cada um dos presidentes “mantenha a ordem em casa”. Além, disso, sem qualquer pudor, teceu comentários sobre o governo da Venezuela, dentro da lógica estadunidense de estar sempre policiando o mundo para garantir seus interesses. Segundo Rice, os Estados Unidos querem a Venezuela “livre e democrática”, o que na linguagem do governo Bush significa: de joelhos diante dos interesses dos EUA.
O presidente brasileiro, Luis Inácio da Silva, por sua vez, agiu como um aluno aplicado do império fornecendo um iluminado palco para que a secretária de estado fizesse de forma explícita uma espécie de “chamado à guerra”, quando se manifestou criticando a compra de armas por Hugo Chávez e convocou abertamente as nações vizinhas a somarem-se na “cruzada” de Washington contra Caracas. Essa não é uma novidade para quem acompanhou a também “cruzada” de Washington contra o Iraque, quando, baseados em mentiras sobre perigosas armas químicas, chamaram o mundo a apoiar o massacre que segue ocorrendo até os dias de hoje – com a heróica resistência do povo – mesmo depois de já se ter descoberto que tudo não passou de uma grande farsa para respaldar a invasão.
Tão logo foram divulgadas as provocações estadunidenses, o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Alí Rodríguez Araque, que participava de uma reunião no Chile com representantes da OEA, manifestou-se junto à imprensa para responder as acusações e ameaças da secretária Condoleezza Rice, considerando-as uma inadmissível intromissão na vida da Venezuela.
Já na Venezuela, o ministro da Defesa, Jorge Luis García Carnero, tratou de informar ao mundo, através dos jornais, sobre outras intromissões estadunidenses, estas dentro mesmo do país. Contou que, segundo denúncia do secretário do Conselho de Defesa da Nação (Codena), general de divisão Melvin López Hidalgo, há comprovada infiltração de elementos de organismo dos Estados Unidos na Petróleos de Venezuela (Pdvsa) Occidente.
“Estamos rodeados por elementos da CIA que têm insistido em provocar transtornos na vida institucional do país. Prova disso são os acontecimentos recentes de 2002, quando violaram o espaço aéreo e as águas territoriais. Havia aviões estacionados em Maiquetía em 11 de abril assim como oficiais que participaram ativamente na tomada do Comando do Exército durante o golpe”, explicou. O ministro Carnero ainda informou que a Força Armada Nacional (FAN) vai trabalhar duro e sem trégua para encontrar os mecanismos necessários que permitam barrar a sempre presente ação dos agentes da CIA no país.
O fim do convênio militar EUA/Venezuela e a ALBA
Toda a ira da secretária estadunidense não tem como razão apenas os acontecimentos desestabilizadores do Equador, outro país que estava bem amarrado na cordinha da democracia do governo Bush. Ocorre que, também na semana passada, o governo venezuelano decidiu não respaldar mais qualquer convênio que signifique a presença de militares ou agentes estadunidenses no país. Esta decisão foi anunciada no programa Alô Presidente de número 220, pelo próprio Hugo Chávez. “Na Venezuela não vamos mais permitir que oficiais estadunidenses assumam funções em qualquer instituto de capacitação das forças de defesa, muito menos que cumpram qualquer atividade em unidades táticas ou operacionais”. Na prática, isso significa soberania e o fim, no país, da famigerada Escola das Américas, coisa que os Estados Unidos não podem tolerar porque, para o governo Bush, ser soberano e agir de forma livre é atentar contra a “democracia”. Nesse sentido, pode-se inferir que democracia, para os estadunidenses, é sinônimo de capitalismo subserviente.
Outra atitude de soberania, considerada antidemocrática pelo governo dos EUA, é a decisão do presidente Chávez, de começar com Cuba o processo que chama de Alternativa Bolivariana para a América do Sul e o Caribe, a ALBA – claro contraponto a ALCA estadunidense. Por conta disso, os dois presidentes se encontraram na última semana em Cuba, durante o primeiro encontro para a aplicação da ALBA.
Segundo informes da imprensa cubana, na visita à Feira Bi-nacional, da qual participaram quase 200 venezuelanos, entre empresários e cooperativistas, o presidente cubano Fidel Castro ressaltou a importância estratégica da integração nos moldes propostos pelo presidente Chávez e disse que, assim, a América Latina deixará de ser o “pátio traseiro” do império, como vem sendo considerada desde há anos. Também se referiu às declarações do secretário de estado dos EUA para a América Latina, Otto Reich, que disse aos jornais ser necessário deter imediatamente a aliança Cuba-Venezuela porque essa união pode “colocar em perigo a estabilidade da América”. Fidel ironizou: “É absolutamente ridículo que se acuse a Cuba e a Venezuela de desestabilizar a América. Na verdade os que estão desestabilizando são aqueles que nos qualificam de desestabilizadores”.
Reich, em declarações à imprensa mundial, seguiu a velha lógica estadunidense de demonizar os adversários e, a exemplo de Rice, deixou muito claro as intenções intervencionistas do seu país. “A combinação do malévolo gênio de Castro, com sua experiência em batalhas políticas e seu desespero econômico, mais o jorro ilimitado de dinheiro que possui Chávez e sua imensa imprudência, ameaçam a estabilidade e a segurança da região”. No encontro entre Chávez e Fidel estas declarações foram lidas e provocaram muito riso. Fidel rebateu a idéia de desespero econômico, dizendo que só pode ser por parte dos EUA, visto que Cuba está valorizando o peso cubano e passa por um momento muito bom na área financeira. “Para se ter uma idéia, o custo de uma entrada numa partida de futebol nos Estados Unidos pode financiar 40 partidas em Cuba. E com o que custa ver uma peça teatral nos EUA, pode-se ver 250 em Cuba”. Fidel ainda falou sobre a “imprudência” de Chávez de voltar ao poder nos braços do povo, depois do golpe de 11 de abril, e ainda ganhar com grande diferença de votos o referendo de agosto. “Começo e me dar conta que tua amizade está me prejudicando”, brincou. “Estamos livres”, diz Chávez.
Chávez, por sua vez, frisou de forma categórica que a Venezuela está liberta. Não é mais colônia dos Estados Unidos e tem demonstrado isso com a liberdade de fazer acordos com países da região consolidando a integração latina e caribenha. “Nunca antes, em tão pouco tempo, havíamos chegado tão longe, com dois países fazendo acordos de integração. E nunca se viu isso em 100 anos porque a Venezuela era colônia. Não é mais e, por isso, fazemos acordo com Cuba e outros países irmãos”, disse, durante sua visita à Feira.
Na visita a Cuba para consolidar o início da ALBA, foi inaugurado um espaço para a Petróleos de Venezuela (PDVSA-Cuba), o que significa um estratégico passo para colocar Cuba no centro das operações da PDVSA no Caribe. Também houve a inauguração da sede do Banco Industrial, em Havana, que vai dar sustentação aos convênios firmados, além de créditos a importadores cubanos e a pequenos e médios produtores seguindo a máxima da ALBA que é de desenvolvimento endógenos das nações amigas.
Ainda segundo os informes da imprensa cubana e venezuelana, o convênio comercial assinado na semana passada pretende colocar diversos produtos da Venezuela no mercado cubano o que pode garantir a empresários venezuelanos de vários setores produtivos (têxtil, agrícola, plástico, etc.) um mercado que pode chegar a 412 milhões de dólares. “Isto tem um potencial muito alto. E o impacto na geração de empregos lá na Venezuela é muito maior do que se pode pensar”.
Feliz com o fato de que a idéia de uma integração soberana na América Latina e no Caribe já começa a andar, Chávez fez questão de lembrar de figuras como Simón Bolívar e Antonio José de Sucre, que tanto sonharam com esse momento. “Eles não puderam terminar sua obra, mas nós estamos aqui, imbuídos deste espírito”.
Uma guerra anunciada?
A soberania conquistada por Chávez e suas vitórias no campo da integração latino-americana estão colocando todo o staff estadunidense em alerta. Secretários de estado voam para lá e para cá na tentativa de manter curtas as rédeas no que diz respeito aos seus comandados. Coisas como a que aconteceu no Equador não podem acontecer. Não foi à toa o recorrido que fez Condoleezza Rice – a senhora arroz, como a chamam os venezuelanos – por vários países vizinhos de Chávez. Na Colômbia, foi dar a bênção ao presidente Uribe que segue colocando em prática o chamado “plano patriótico” de luta contra o terrorismo e o narcotráfico. Qualquer criança de quatro anos sabe que essa ocupação estadunidense na Colômbia tem por trás o domínio sobre a Amazônia e a biodiversidade da região.
No Chile, Condoleezza foi participar de uma tal III Conferência Ministerial da Comunidade de Democracias, sabe-se deus lá o que pode significar isso. Se for algo gerido pelo conceito de democracia estadunidense, pode ser tenebroso para a América Latina, visto que democracia para o governo Bush é ele mandando e o resto obedecendo.
Em El Salvador a senhora Rice foi fazer relações públicas, agradando ao presidente Antônio Saca que é governante do único país da centro-américa a ter tropas no Iraque. E, no Brasil, veio para uma “agenda aberta” que se configurou em palco armado para destilar venenos e ameaças contra a Venezuela bolivariana.
Enfim, foi uma semana quente. Em Cuba, além dos convênios e inaugurações que dão início a caminhada da Alba também aconteceu um grande encontro hemisférico, com a presença de dezenas de militantes dos movimentos contra a ALCA e os TLCs, para traçarem um plano de luta que aqueça o coração de todas as gentes da América Latina e do Caribe. Os EUA ameaçam com guerras e sanções, os povos se organizam e resistem. Ontem, no primeiro de maio, milhões deram o tom da luta. Nada vai ser fácil para a senhora arroz e seus chefes!
* Elaine Tavares é Jornalista e colaboradora da Agência Adital