Recentemente fomos brindados com duas notícias importantes e assustadoras relativas ao trabalho no TRT da 15ª Região. A primeira é que nossos servidores produzem 60% acima da média nacional. A segunda, que nosso histórico déficit de pessoal (que na última contagem estava em torno de 1400 funcionários) está prestes a ser solucionado com a ajuda da inteligência artificial. São fatos relativamente independentes, mas que guardam um grau de correlação: independentes porque o trabalhador que entrega 60% a mais do que a média não faz a menor ideia do que seja a inteligência artificial que em breve o “auxiliará”; correlacionados porque a ideia desse auxílio cibernético decorre da conclusão óbvia de que há limites à produtividade do ser humano. Limites que talvez já tenham sido atingidos e que só podem ser superados por não-humanos.
A produtividade noticiada deixou-nos todos em estado de choque. Talvez, de início, orgulhosos do nosso feito, mas logo em seguida impactados com o seu verdadeiro significado. Se o salário é o mesmo e a entrega é 60% maior, isso quer dizer que o nosso trabalho vale 62,5% do trabalho dos demais servidores, é só fazer uma regra de três. Os servidores, esticados em sua capacidade produtiva, merecem, decerto, parabéns pela resiliência, empenho e seriedade que sempre foram nossas características marcantes, mas a congratulação é recebida de forma doce-amarga. Não há o que comemorar.
Embora a solução mais simples, e humana, para a falta de gente, seja justamente a contratação de mais gente (o que, aliás, aquece a economia, emprega desempregados e faz o mundo girar melhor), há décadas que esta simples solução tem sido preterida por administradores, não só do judiciário mas de todas as áreas da administração pública. Preterida em favor de equipamentos, programas de computador, consultorias e serviços terceirizados, que em geral estão fora do teto de gastos e contam com a simpatia de políticos do Oiapoque ao Chuí. Parece que dinheiro para equipamentos e programas sempre há. Mas não para os seres humanos, progressivamente adoecidos, que teimam em seguir fazendo “mais com menos”. Sobretudo com menos gente.
É certo que uma parte do mundo ocidental já acorda do deslumbramento tecnológico e começa a lidar com as consequências da substituição de gente e livros por tecnologia. A Suécia, antes líder de educação no mundo, decidiu agora retroceder no processo de digitalização, após notar a queda no ranking e a perda no nível de leitura dos alunos, que correm o risco de se tornarem analfabetos funcionais, segundo a ministra da educação.
É necessário então questionarmos o que vai significar o uso da inteligência artificial para a nossa atividade jurisdicional. Aqui, um parênteses: por inteligência artificial, não me refiro aos programas que têm sido utilizados há décadas na nossa Justiça para atividades repetitivas e rotineiras. Não se trata meramente de uma nova tecnologia, como telefone, internet, mas da autêntica substituição do raciocínio, escrita e decisão humanos. Este dia está muito próximo, pois recentemente o Chat GPT passou no exame da ordem americano entre os primeiros colocados. Assim, não há mais como fugir da reflexão sobre se a jurisdição pode (ou deve) ser padronizada e quais os efeitos disso sobre os seres humanos, que têm sido sistematicamente colocados fora da equação. Se os acontecimentos seguirem seu curso natural, sem resistência, se avizinha um cenário em que os escritórios de advocacia apresentam petições elaboradas por máquinas e essas petições serão julgadas também por máquinas, prescindindo totalmente de qualquer interação humana, sem advogados, sem funcionários, sem juízes. A quem exatamente isso interessa?
Por enquanto, ainda somos nós, humanos, os únicos capazes de exercer o senso crítico, apurado por milhões de anos de evolução biológica e cultural. Que não nos falte o senso crítico neste momento divisório, portanto. As melhores cabeças de nosso planeta, pessoas com profundo entendimento do tema, alertam sobre o risco de entregarmos nossos processos decisórios a programas sobre os quais não temos mais controle e de abrirmos mão, de forma absoluta, da centralidade do ser humano como sujeito da história. Não são histéricos, não são leigos, são nossas melhores mentes, muitos dos quais diretamente envolvidos na criação da inteligência artificial, e devemos ter a humildade de ao menos ouvi-los. A esse respeito, sugiro a leitura deste artigo (link https://epocanegocios.globo.com/tecnologia/noticia/2023/03/em-artigo-na-time-pesquisador-pede-proibicao-global-de-ferramentas-de-ia-por-tempo-indeterminado.ghtml ) e este aqui (link https://istoedinheiro.com.br/elon-musk-e-centenas-de-especialistas-pedem-pausa-na-ia/)
Quanto a nós, funcionários da Justiça do Trabalho, aviltados por uma estrutura que busca nos retirar até a última gota de produção, enquanto já nos avisa da nossa obsolescência futura, nos cabe resistir, com força e solidariedade, e alertar:
Aqui na JT também somos trabalhadores: não instrumentos, não engrenagens, mas pessoas com projetos de vida, filhos, cachorros, doenças para cuidar.
Aqui na JT também se deve praticar o trabalho digno: e a mecanização fere a dignidade do trabalhador e do jurisdicionado, ao tratá-los como números. A dignidade reside, antes de tudo, no reconhecimento da humanidade como valor central.
Finalizo essa reflexão com o chamado que a presidente do sindicato dos atores Sag-Aftra, Fran Drescher, fez a todos os trabalhadores do mundo:
“Se não nos levantarmos firmes agora, todos estaremos em apuros”.
*Daniela Villas Boas Westfahl é diretora de Imprensa e Comunicação do Sindiquinze.
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