Técnico Judiciário: suporte técnico-administrativo e a mudança de escolaridade para investidura no cargo
Vicente de Paulo da Silva Sousa, técnico judiciário do TRE/CE. Graduado em Direito. Pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Constitucional. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal. Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil. Integrante do Movimento Nacional pela Valorização dos Técnicos Judiciários (MOVATEC) e do Movimento Técnicos em Ação (TEA).
1 Cargo, servidor, modernização do Poder Judiciário da União e o princípio da eficiência.
A relevância do cargo de técnico judiciário para o bom funcionamento da prestação jurisdicional federal brasileira é incontestável. Igual é a importância histórica que tal carreira tem para a construção do Poder Judiciário da União, com previsão legal no artigo 2º, inciso II, da Lei n.º 11.416, de 15 de dezembro de 2006 [1]:
“Art. 2º. Os Quadros de Pessoal efetivo do Poder Judiciário são compostos pelas seguintes Carreiras, constituídas pelos respectivos cargos de provimento efetivo:
I – Analista Judiciário;
II – Técnico Judiciário;
III – Auxiliar Judiciário.” [grifado]
É comum, mas carreira e cargo não se confundem, assim como ocupante do cargo [2] e o cargo ocupado por uma pessoa também não se confundem. Equívocos como esses, recorrentes no cotidiano forense, faz com que visões retrógradas impeçam a modernização da estrutura organizacional do serviço público.
Esclareçamos, portanto, esse embaraço. Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor [3]. Por outro lado, servidor é a pessoa legalmente investida em cargo público [4]. Descrições entabuladas na Lei n.º 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Veja-se:
“Art. 2º. Para os efeitos desta Lei, servidor é a pessoa legalmente investida em cargo público.
Art. 3º. Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor.”
Assim, dando sistematicidade ao corpo jurídico, a Lei n.º 11.416/2006 estabelece em linhas gerais as atribuições do cargo objeto do presente estudo.
“Art. 4º. As atribuições dos cargos serão descritas em regulamento, observado o seguinte:
(…)
II – Carreira de Técnico Judiciário: execução de tarefas de suporte técnico e administrativo;” [grifado]
Sobre tais institutos, a doutrina traz na lição de Bandeira de Mello (1975a) o caráter nuclear que envolve sua delimitação quando diz que “cargo é a denominação dada à mais simples unidade de poderes e deveres estatais a serem expressos por um agente” [5].
A estruturação dos cargos é relevante para o Estado. Nos últimos anos, foram implantadas alterações constitucionais, legais e gerenciais (CNJ), a fim de melhorar a gestão da prestação jurisdicoinal e seu serviço auxiliar. Para alcançar a tão sonhada gestão efetiva, há que aparelhar o capital humano com competências técnico-profissionais acompanhando a evolução do serviço público.
A Emenda Constitucional n.º 45/2004 inaugurou o modelo gerencial vislumbrando a modernização do Poder Judiciário da União, tendo como objetivo a redução da lentidão dos processos judiciais e a eficácia de suas decisões. Tal marco normativo passou a exigir melhoria na prestação dos serviços e maior qualificação de seu quadro funcional, ou seja, dos cargos e dos seus ocupantes: os servidores.
Em virtude dessas mudanças pelas quais vem passando o Poder Judiciário, em especial, com a implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJe), os órgãos do judiciário necessitam de servidores altamente qualificados. Seja para atividades de planejamento e organização (realizadas pelos analistas), seja para atividades de suporte técnico e administrativo (realizadas pelos técnicos). Nesse sentido, há que se atualizar a estrutura dos cargos às necessidades sociais hodiernas.
2 Investidura no cargo de técnico judiciário, progresso tecnológico e científico e a alta complexidade do serviço prestado.
O artigo 37, II, da Constituição Federal de 1988 [6], prescreve a forma de investidura em cargo público, ou seja, determina que o ato de posse no cargo se dará através de concurso público de provas ou de provas e títulos de acordo com a natureza e a complexidade do cargo.
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(…)
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;” [grifado]
O concurso público de provas de acordo com a natureza e a complexidade do cargo é requisito para a investidura em cargo público. Está aí a base constitucional para que se avalie devidamente o futuro ocupante do cargo de técnico judiciário, considerando que suas atribuições são de alta complexidade, compatível apenas com quem possui diploma de conclusão curso superior.
É a revisão da escolaridade para ingresso no cargo que a classe busca. Ao contrário do que muitos pensam, isso não é forma de provimento derivado, o que é vedado no ordenamento jurídico. Zanella di Pietro (2009, p. 523) bem ensina sobre o princípio do concurso público [7]:
“Quando a Constituição fala em concurso público, ela está exigindo processo aberto a todos os interessados (…). Daí não terem mais fundamento algumas formas de provimento, sem concurso público, previstas na legislação anterior à Constituição de 1988, como a transposição (ou ascensão) e a readmissão.” [grifado]
O cargo de técnico judiciário deve atender às novas necessidades trazidas pelo progresso tecnológico e científico, o qual move o curso natural da sociedade contemporânea. Pessoas e instituições incorporam as inovações resultantes desse processo que inexoravelmente desencadeia complexidades cada vez maiores no cotidiano e nas relações humanas e institucionais.
Da família até o produto mais acabado da organização social (o Estado), impactos do processo de desenvolvimento incidem de tal forma que, se não se prepararem para esse choque de mudanças, estarão todos fadados ao fracasso, resultando em desequilíbrios sociais.
Nesse contexto, as pessoas, em especial os trabalhadores, são cada vez mais exigidas quanto ao nível de conhecimento que se incorpora à condução das suas atividades laborais. Tamanha é a celeridade dessa evolução, que as convenções formais (padrões sociais, costumes, leis, regulamentos etc) não acompanham a primazia da realidade sobre o ideal, vetor normativo que orienta qualquer ordem social, política, econômica e jurídica.
A obsolescência de formalismos inócuos é resultado da incapacidade das instituições de conjugarem o imaginário sobre o real ou vice versa.
Se dada posição de trabalho há 20 (vinte) anos carecia de um exercício braçal para gerar produção, essa mesma posição de trabalho hoje, cedendo lugar à máquina, fará com que a produção subsista se o ocupante da antiga posição de trabalho evoluir para a condição de operador dessa mesma máquina, o que exige acúmulo de cultura e conhecimentos para tal, ou seja, requer exercício mental cada vez mais apurado tecnicamente.
Não há que se confundir “posição de trabalho” (cargo/função) com o trabalhador (servidor). Este OCUPA uma função para produzir e em troca é (re)compensado materialmente se atendidas as exigências.
A esfera privada responde melhor aos estímulos sociais. Por outro lado, a administração pública, que se sustenta em formalismos exacerbados, não acompanha essa dinâmica com a mesma desenvoltura privatista. A estrita legalidade contribui solenemente para esse cenário.
A ordem jurídica deve acompanhar as transformações sociais sob pena de estagnação. O trabalhador braçal passou a se qualificar ao longo dos tempos para atender às novas demandas da sociedade.
Trabalhador aqui em sentido amplo, que inclui os servidores públicos. Cargos são dimensionados e redimensionados na estrutura administrativa pública para que a sociedade continue gozando da prestação dos serviços, à luz de cânones constitucionais como a efetividade e a eficiência. No Poder Judiciário da União, o carimbador de processos físicos deu lugar ao operador de processos digitais.
Eis, portanto, o substrato fático a inspirar a análise correta da escolaridade para ingresso no cargo de técnico judiciário federal. A legitimidade, a constitucionalidade e a legalidade do novo requisito para ingresso no cargo refletem as novas exigências da sociedade são inquestionáveis. Na ADI 4.303, o Supremo Tribunal Federal (STF), em paradigmático julgamento de litígio entre o Governo do Rio Grande do Norte e a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, entendeu que a mudança de escolaridade para nível superior de cargos públicos não fere a ordem constitucional.
Após o julgamento da ADI n° 4.303 no STF, restou claro que a constitucionalidade da elevação da escolaridade como requisito para o ingresso no cargo de técnico judiciário é majoritária e factível. Ademais, a elevação de nível de escolaridade para esse cargo está em perfeita consonância com a missão de modernização do poder judiciário, o qual busca prestar serviços com moralidade, eficiência e efetividade em benefício da sociedade e do bem estar comum.
3 Solução drástica: terceirização e realocação das atribuições de suporte técnico e administrativo para o cargo de analista.
O Poder Judiciário da União, diante da sua incapacidade de acompanhar a evolução dos cargos públicos, incorre em contradição tamanha, qual seja, aumenta o número de vagas para analistas à medida que vem terceirizando o serviço de suporte técnico e administrativo realizado pelos técnicos judiciários.
Drástica e irracionalmente o poder judiciário promove lenta extinção do cargo de técnico judiciário. Proposições legislativas como o PL n.º 7.990/14, PL n.º 8.132/14, PL n.º 8.307/14, PL n.º 4217/12 (PLC n.º 85/2013) retratam claramente a diminuição das vagas para o cargo de técnico judiciário.
Essa situação se agrava quando as vagas são destinadas ao primeiro grau de jurisdição. O exemplo do PL n.º 8.318/14 (em trâmite na Câmara dos Deputados) é emblemático, uma vez que propõe a criação de 1 (um) cargo de juiz federal, 1 (um) de juiz substituto, 13 (treze) de analista judiciário, 4 (quatro) de técnico judiciário, 1 (um) cargo em comissão, e 13 (treze) funções comissionadas [8].
Disso, duas indagações surgem:
1) Os analistas estão realizando as tarefas de suporte técnico administrativo, que hoje são de alta complexidade, usurpando as atribuições dos técnicos judiciários?
2) O poder judiciário está terceirizando essas atividades estatais? Está deixando de recrutar técnicos judiciários por meio de concurso público?
O poder judiciário vem descartando o suporte técnico e administrativo do técnico judiciário gerando grave contradição: empossa novos analistas para absorverem o esse suporte técnico administrativo realizado pelos técnicos judiciários ao tempo que obriga os analistas a usurparem as atribuições dos técnicos judiciários.
Essa disfunção lesa a categoria de servidores como um todo, combalindo a valorização dos técnicos judiciários, relegando e desprezando o que poderia ser medida de eficiência, justiça e, por conseguinte, promoção da moralidade pública, colocando os analistas judiciários em desvio de função ou sobrecarregando-os com as atribuições dos técnicos judiciários.
4 O mito da elitização: a extinção dos técnicos judiciários e a hegemonização dos analistas como única carreira do Quadro de Pessoal do Poder Judiciário da União.
O mito da elitização contribui para a desvalorização do cargo de técnico judiciário. O PJU não pode penalizar a prestação dos serviços arvorando-se em uma pseudopolítica pública que compete a outras esferas estatais executá-la.
Um erro não pode justificar outro erro, qual seja, a manutenção da escolaridade de nível médio para um cargo que na prática é de nível superior tomando como justificativa a inserção no mercado de trabalho de quem possui nível médio. A sociedade evoluiu. Professores de escolas públicas ocupavam cargos de nível médio, hoje continuam no mesmo cargo, porém o ingresso hoje requer nível superior. Não há que se falar em elitização.
O mesmo ocorreu com os cargos de soldado da polícia militar e de bombeiro, ambos do Distrito Federal. Oficiais-de-justiça de quase todos os Tribunais de Justiça, Técnicos da Receita Federal dentre tantos outros que só integram o rol de cargos modernizados.
A elitização é um discurso inapropriado. Contradiz a realidade do poder judiciário. Ademais, a manutenção de vagas de nível médio para cargos que na prática desenvolvem tarefas de alta complexidade gera grave injustiça. Política pública de acesso ao mercado de trabalho está a cargo de outras esferas político-administrativas.
A sofisticação das atividades do técnico judiciário, por exemplo, tem que ser reconhecida legalmente, conferindo conteúdo mais apropriado à correspondência da Lei com a realidade que a inspira. As tarefas de alta complexidade do suporte técnico e administrativo (art. 4o., II, Lei n.º 11.416/06) [9], as quais só podem ser exercidas por quem possui diploma de nível superior, devem atualizar o regramento legal e alicerçar a justificativa política para a mudança do critério para o ingresso no cargo de técnico judiciário, como vem sendo feito em grande escala, a exemplo das carreiras já mencionadas.
Veja-se a descrição legal da fonte de atribuições do cargo em comento, “As atribuições dos cargos serão descritas em regulamento, observado o seguinte: (…) II – Carreira de Técnico Judiciário: execução de tarefas de suporte técnico e administrativo;”
Discursos como elitização conduzem seus defensores a um grupo pernicioso socialmente. Quem perfilha o discurso antielitista defende sorrateiramente a elitização do poder judiciário: grave contradição.
Se a onda de extinção prosperar, em poucos anos haverá apenas uma Carreira no poder judiciário federal, aglutinando todas as atividades das outras carreiras não menos imprescindíveis para o funcionamento do PJU.
O aumento de vagas para analista judiciário aliado ao vertiginoso decréscimo de vagas de técnico judiciário denota a verdadeira elitização.
Com a ampliação do acesso ao ensino superior (público e privado), a classe menos favorecida tem mais oportunidades de ingressar em cargos de maior escolaridade no serviço público que se moderniza a ritmos nunca vistos. Maior escolaridade é resultado natural do desenvolvimento social, tecnológico e científico. Veja-se em países desenvolvidos. O que ocorre não é elitização, mas sim progresso social. Crescimento. Desenvolvimento.
Portanto, a elitização assustadora com a supressão das vagas de técnicos judiciários concomitantemente a um vultoso acréscimo de vagas de analistas no poder judiciário federal é fato notório e incontroverso.
Essa política contribui para um impacto financeiro descomunal para a administração pública. Optar por modernizar seu quadro com outra Carreira de nível superior, remunerando-a adequadamente, compatível com a alta complexidade vertida pelo suporte qualificado do técnico judiciário a um custo menor para os cofres públicos é a melhor solução.
5 Considerações finais
O progresso tecnológico e científico exige que a sociedade e o Estado se adaptem às novas exigências trazidas por esse processo de desenvolvimento.
Os postos de trabalho vêm passando por alterações abruptas. E a administração pública não pode ficar à mercê da estagnação. Deve seguir o exemplo da esfera privada, fonte de inspiração para o sistema gerencial de onde importou valores orientadores para um serviço público modernizado.
Esse contexto se agrava no Poder Judiciário da União. A função estatal onde todos buscam efetivar o ideal de justiça deve conjugar a realidade ao aparelhamento legal.
Por todas as razões expostas, conclui-se que a investidura no cargo de técnico judiciário exige em muito diploma de curso superior. Além de constitucional e legalmente viável (dimensão jurídica), a legitimidade de tal pleito vem ganhando corpo cada vez maior no âmbito das entidades representativas da categoria e nos tribunais Brasil afora (dimensão política).
Tal medida é imprescindível para que os ocupantes desse cargo possam bem desempenhar as tarefas de alta complexidade e as responsabilidades que lhes são cometidas a fim de assegurar uma prestação jurisdicional efetiva e eficiente.
Referências
[1] [2] BRASIL, República Federativa do Brasil. Lei n.º 11.416, de 15 de dezembro de 2016. Lex: Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11416.htm>. Acessado em: 15 jun 2015.
[3] [4] BRASIL, República Federativa do Brasil. Lei n.º 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Lex: Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>. Acessado em: 15 jun 2015.
[5] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Apontamentos sobre agentes públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975a.
[6] BRASIL, República Federativa do Brasil. Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988. Lex: Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acessado em: 15 jun 2015.
[7] PIETRO, Maria Silvia Zanella Di. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010.
[8] BRASIL, República Federativa do Brasil. Projeto de Lei da Câmara n.º 8.318, de 18 de dezembro de 2014. Projeto de Lei: Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acessado em: 15 jun 2015.
[9] BRASIL, República Federativa do Brasil. Lei n.º 11.416, de 15 de dezembro de 2016. Lex: Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11416.htm>. Acessado em: 15 jun 2015.