Por Rogério Cezar de Cerqueira Leite* – 14/04/2006
Em meados da década de 70, o poderoso “Sistema Bell”, que englobava então toda a telefonia dos EUA, do Canadá e muito do tráfego internacional de comunicações, lançou uma concorrência internacional para a primeira encomenda de fibras óticas. Essa inovação havia ocorrido graças a uma colaboração entre os laboratórios da própria Bell e a Corning, uma empresa especializada em vidros.
Não obstante, ganha a concorrência uma empresa japonesa, a Fujitsu. O governo americano interveio contra essa aquisição, sob o argumento de que a produção fora do país acarretaria perda de capacidade tecnológica. Os japoneses ofereceram-se, então, para montar uma fábrica nos EUA, o que foi rechaçado com ainda maior vigor pelo governo americano. E a aquisição teve que ser realizada nos EUA, em empresa americana.
Ora, os EUA não estavam apenas defendendo uma indústria própria. Antes de mais nada, preservavam seu desenvolvimento tecnológico futuro. Embora possuíssem um aparato tecnológico muito mais avançado à época do que o Japão, sabiam que perderiam essa vantagem com a cessão do próprio mercado.
A implantação de uma fábrica japonesa nos EUA traria certamente vantagens a curto prazo (investimentos) e a médio prazo (empregos, renda etc). Todavia, a longo prazo, haveria prejuízos irreparáveis para a indústria americana, como perdas de competitividade devido à redução de atividades de pesquisas, que, por sua vez, tornariam-se insustentáveis sem níveis adequados de produção.
Outro fator que justificaria em si a decisão protecionista americana é a cultura empresarial característica da indústria japonesa. Quantas indústrias de autopeças brasileiras conseguem fornecer para montadoras japonesas? Preferem essas importar ou trazer uma fornecedora do Japão. Basta lembrar que praticamente todo o sistema produtivo japonês é composto por apenas seis gigantescos conglomerados, ou melhor, feudos.
Pois bem, o Brasil, depois de longas discussões, escolheu a tecnologia japonesa para seu sistema de TV Digital. Mostrou coragem. Nenhum outro país do mundo o fez, senão o próprio Japão, cuja televisão é estatizada e, portanto, funciona também como agência reguladora. A diferença essencial entre a tecnologia japonesa e as duas outras é que a primeira faz com que todo usuário eventual se submeta às empresas de televisão, enquanto com a adoção de uma das outras tecnologias a telefonia móvel e outras formas de comunicação interativa se tornam autônomas, ou seja, não precisam ser intermediadas pelas empresas de televisão.
Podemos compreender, portanto, por que as empresas de TV escolheram e moveram mundos e fundos para que fosse escolhida a tecnologia japonesa. Pode-se imaginar que imenso poder político e financeiro conseguiram. Qualquer outra consideração sobre características tecnológicas ou patrimonial é perfumaria. Para compensar essa faceta negativa da escolha, o Brasil receberia de presente duas fábricas, uma de semicondutores (componentes) e outra de monitores a plasma. Espera-se, com isso, economizar US$ 1 bilhão anualmente com a substituição de importações. E também empregos serão criados. Todavia novamente se compromete o futuro em troca de benefícios pífios do presente.
Ocupam-se espaços tecnológicos presentes e futuros e mercados imensos. São R$ 2 bilhões de investimentos nas duas fábricas. Entretanto, só os conversores a serem inseridos nos atuais aparelhos necessários para a tecnologia digital já representam um mercado de R$ 30 bilhões a R$ 50 bilhões. Esses japoneses são vivos, não são? Aprenderam com os gregos, os que derrotaram Tróia.
Outra grande perda é a da convivência e trocas tecnológicas e comerciais com o resto do mundo. Portanto ninguém poderá acreditar que a escolha da tecnologia japonesa foi feita por razões de ordem tecnológica ou mesmo econômica. Também não há nenhuma urgência quanto à implantação de um sistema digital no Brasil. Quase nenhum país do mundo implantou, de fato, a TV digital. Nem os EUA nem o próprio Japão, onde apenas duas cidades a experimentam atualmente.
Então por que esse açodamento histérico? Falou-se na necessidade vital para a Copa do Mundo ou para o Sete de Setembro, absurdos tecnológicos e financeiros, que apenas os apoucados tradicionais analistas podem conceber. Só há uma explicação. Vamos ver se você, caro leitor inteligente, é capaz de adivinhar. Plim-Plim!
* Rogério Cezar de Cerqueira Leite, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.