Parlamento brasileiro resolve afrontar a Constituição Federal de 88 e, como consequência, fere de morte o segmento das pessoas com deficiência

Significa que a pessoa sem visão em um dos olhos, mas visão normal no outro olho, agora está equiparada a toda e qualquer pessoa com deficiência no Brasil, conforme decisão de nossos parlamentares. Vale dizer que tal decisão também já se deu em sede de Senado Federal, uma vez que tal projeto de lei foi iniciado por lá. Ou seja, agora está nas mãos do Sr. Jair Messias Bolsonaro a decisão final. Cabe a ele vetar ou sancionar tal questão.

​Saltou-nos aos olhos o total desrespeito na noite de ontem à atitude de nossos deputados federais, seja no que se refere a forma com que conduziram toda a votação e colocação em pauta do tema, seja com relação ao mérito apreciado.

​No que tange a forma, registramos que em meio a pandemia altamente voraz que vivemos, colocar tal tema na pauta de votação de maneira repentina, pegando a todos e todas de surpresa é, para falar o mínimo, lamentável. Podemos dizer que foi, de fato, uma atitude na calada da noite! Um tema como esse não se deve e nem se pode pensar em discutir em meio a esta catástrofe em que vivemos com quase 260 mil mortos. Não houve tempo, nem oportunidade para a sociedade civil organizada manifestar-se no Parlamento. Há de ressaltar-se que não tivemos nenhuma audiência pública convocada para tratar da temática. Precisamos perguntar o motivo da URGÊNCIA com que foi tratada essa questão? Por que não se passou por todas as Comissões da Casa de modo a se maturar melhor o tema e abrindo-se assim a oportunidade de ouvir os principais interessados e interessadas no assunto? Não podemos, definitivamente, aprovar tal reconhecimento sem democratizar a discussão. É preciso registrar que o Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência) maior e mais representativo órgão de interesse do segmento, sequer foi chamado. As organizações de defesa de direitos das Pessoas com Deficiência em âmbito nacional, nem se fala. Tratar um tema dessa importância apenas com sentimentalismos e somente de um dos lados, certamente, não nos levaria a bom termo. Por mais que não gostemos de certas leis ou até mesmo que asconsideremos inconstitucionais ou injustas à primeira vista, jamais podemos perder o foco da democracia, onde todos e todas envolvidos e envolvidas devem ser minimamente ouvidos. Nosso Parlamento jogou por terra o Estado Democrático de Direito na noite de terça-feira (2/03)!

​Como se não bastassem tais ações antidemocráticas nas fases que antecederam a votação, o que já poderíamos configurar um absurdo, durante a própria votação, o Presidente do Congresso Nacional, Sr. Arthur Lira (PP de AL), além de cortar a fala da deputada Érika Kokai (PT do DF), que discursava contrariamente ao Projeto, não concedeu a palavra ao líder do Partido Novo, que havia solicitado instantes antes e que também havia orientado o voto Não ao PL. No entanto, concedeu a palavra quando solicitada a um outro parlamentar que a solicitou mesmo após o término da votação, muito provavelmente porque sua fala foi no sentido da aprovação daquela ABERRAÇÃO JURÍDICA.

​Ainda sem adentrarmos ao mérito do Projeto de Lei, chamou-nos muito a atenção o fato da presença em plenário daquela que se notabilizou como uma das maiores defensoras dos Monoculares, a Sra. Amália Barros, inclusive produzindo aglomerações com parlamentares e algumas outras pessoas, ferindo assim todas as recomendações da Organização Mundial de Saúde. Foi bastante estranha a presença daquela Sra. ali, principalmente em momento de pandemia e de “Lockdown” em Brasília, capital federal. As entradas de pessoas estranhas ao Congresso Nacional estavam proibidas, até onde tivemos notícia pela Grande Imprensa. Como ela conseguiu entrar nas dependências do Congresso Nacional? E o que é ainda mais grave ao ver deste que escreve, como teria ela conseguido entrar no Plenário? Enfim, são perguntas que jamais teremos as respostas. 

​Passando agora a análise do mérito do que foi aprovado e por amplíssima maioria de nossos deputados e deputadas ontem à noite, observamos uma VERDADEIRA TERATOLOGIA JURÍDICA, uma AFRONTA a nossa CONSTITUIÇÃO CIDADÃ de 1988. E por que afirmamos com tanta veemência que foi uma grande Inconstitucionalidade aprovada ontem à noite em Brasília? Senão, vejamos qual a real DEFINIÇÃO de PESSOA COM DEFICIÊNCIA em nosso Ordenamento Jurídico Pátrio e também para todos os Estados-membros assinantes da CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA? Transcrevo aqui o que diz o art. 2º e seus parágrafos da Lei Brasileira de Inclusão / Estatuto da Pessoa com Deficiência (13.146/2015):

“Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: (Vigência)

I – Os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II – Os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III – A limitação no desempenho de atividades; e

IV – A restrição de participação.

§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.        (Vide Lei nº 13.846, de 2019). ”

​Pela clareza solar que define o dispositivo acima sobre o que é Pessoa com Deficiência, conceitualmente falando, já poderíamos concluir por aqui mesmo que realmente estamos diante de uma INCONSTITUCIONALIDADE aprovada pela Casa Baixa na noite do dia 02 de março de 2021. No entanto, precisamos explicar melhor para ver se nossos parlamentares brasileiros conseguem entender, ainda que de modo tardio e já sem efeitos para evitar o mal já causado a milhões de Pessoas com Deficiência em nosso país.

​O texto é claro ao dizer que para conceituar Pessoa com Deficiência, é preciso observarmos de maneira conjunta o impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual e sensorial, que, quando da interação com uma ou mais Barreiras, incluindo aqui a de ordem atitudinal, possa acarretar obstruções à sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

​Portanto, para conceituarmos juridicamente Pessoa com Deficiência, é preciso que tenhamos presentes o impedimento de longo prazo e as barreiras. Estes devem estar interagindo e esta interação não pode obstruir a plena e efetiva participação em igualdade de condições na sociedade com as demais pessoas. Levando agora tal entendimento para os monoculares, temos que eles possuem um impedimento, qual seja, eles têm um dos olhos sem funcionar. Em princípio, eles não teriam as tais barreiras colocadas pelo dispositivo, mas ainda que consideremos que as tenham, quando vamos para a interação entre o impedimento e essas tais barreiras, verificamos que isto não obstrui a plena e efetiva participação dos monoculares em igualdade de condições na sociedade com as demais pessoas, visto que não necessitam de ajudas técnicas para desenvolverem-se e deslocarem-se em seus cotidianos. Quais são as ajudas técnicas ou tecnologias assistivas que um monocular precisa em seu dia-a-dia para terem uma participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas? É a pergunta que não quer calar? Ressalte-se aqui o fato de que eles podem até mesmo dirigir, podem ser habilitados pelo Departamento Nacional de Trânsito normalmente, inclusive temos registros de um piloto de automobilismo monocular na história. Se formos considerar seus argumentos de que não podem ser policiais ou que não podem dirigir profissionalmente, vamos chegar aos absurdos de termos que considerar como sendo Pessoas com Deficiência também as de baixa estatura, pois, afinal de contas, não podem ser militares. E as pessoas com miopia um pouco maior que não podem ser pilotos de avião? O que fazer com elas? Vamos também considerar que são Pessoas com Deficiência? Se formos assim, não precisaremos mais ter Políticas Afirmativas para o segmento das Pessoas com Deficiência, pois teremos mais gente com deficiência do que sem. Vamos acabar por desnaturar o próprio objetivo a que se propõe uma verdadeira Política Afirmativa que é de INCLUIR. Preferimos aqui neste artigo não tratar sequer das questões financeiras envolvidas na aprovação de tal reconhecimento para efeitos fiscais de governo, uma vez que precisaríamos de uma grande exposição de motivos e com dados mais apurados, o que, efetivamente não nos é permitido, uma vez que ninguém sabe dizer ao certo quantos são os Monoculares no Brasil. Aliás, esse foi um outro problema grande detectado quando de nossa rápida avaliação do Projeto de Lei 1615/19. Os Monoculares nunca dizem quantos são de fato. Tal dado seria imprescindível para uma avaliação que se deseja responsável por parte de nossos parlamentares, ao meu humilde ver de cidadão brasileiro.

Surpreendentemente e como se não bastassem todos os problemas apontados acima, ainda temos mais um, que é o fato de tal ABERRAÇÃO de projeto de lei não ter previsto sequer a AVALIAÇÃO BIOPSICOSSOCIAL preconizada pela LBI em seu parágrafo Primeiro do artigo já relacionado acima. Esta chamada AVALIAÇÃO BIOPSICOSSOCIAL perfaz-se quando observados quatro quesitos expostos nos incisos do citado parágrafo acima e necessariamente será feita por equipe multiprofissional e interdisciplinar. Portanto, podemos afirmar sem qualquer receio de errar que o projeto de lei ontem aprovado por nossos deputados e deputadas federais retoma o MODELO MÉDICO da Deficiência, tão combatido por nós do segmento das Pessoas com Deficiência no Brasil. Tal modelo médico não é mais permitido, seja com base na LBI, seja com fulcro na Constituição Federal ou mesmo tendo por alvo maior a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada e ratificada pela República Federativa do Brasil.

​É de bom alvedrio sempre lembrarmos e nunca é demais dizer que os termos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no território nacional tem valor e força de LETRA CONSTITUCIONAL, tendo sido o Primeiro Tratado internacional de Direitos Humanos assinado por nosso país a entrar no ordenamento jurídico pátrio com valor de Norma Constitucional.

​Portanto, por todos os motivos acima expostos e aclarados, afirmamos sem medo de errar que o que foi feito no dia 2 de março de 2021 em Brasília por nossos deputados e deputadas foi um verdadeiro ESTUPRO à Carta Cidadã de 88, além de ter ferido de morte um segmento social inteiro, visto que as pessoas que realmente têm Deficiência não acessarão mais o mercado de trabalho. Para o empregador será muito mais vantajoso contratar um monocular a um cego, surdo ou mesmo alguém com deficiência física, por exemplo, pois não terá que adaptar seu ambiente de trabalho para receber tal profissional monocular, não tendo assim gastos extras. Ao contrário, ele ainda poderá colocar o empregado monocular para dirigir nos momentos de necessidade. O mercado agora vai ter, com a sanção de tal projeto de Lei, o que ele sempre quis, ou seja, o cego que enxerga. Desta forma, o empregador atenderá aos ditames da Lei 8.213/90, a chamada Lei de Cotas a custo zero e todos ficarão felizes! O termo “todos” aqui foi utilizado ironicamente, pois os únicos felizes desta relação, serão os empresários e os monoculares.

​Por fim mesmo, só precisamos registrar que o projeto de lei 1.615/2019 se mostrou realmente poderoso, tendo em vista que conseguiu unir políticos de Direita, Esquerda e de Centro e tudo isso em prol do desrespeito à Constituição Federal. Nós do segmento das Pessoas com Deficiência temos que aqui agradecer aos parlamentares do PSOL e do Novo que votaram unissonamente contrários ao PL inconstitucional e parte do PT e PSDB. Registramos que todos os demais partidos votaram pela aprovação de tal ABSURDO! As bancadas do PT, PSDB e Minorias da Câmara liberaram seus políticos para votarem da forma que quisessem. Por isso registramos nossos agradecimentos apenas para parte do PT e PSDB.

​Finalizando, só temos a parabenizar nossos deputados e deputadas por terem aprovado na calada da noite do dia 2 de março uma INCONSTITUCIONALIDADE TREMENDA E TAMBÉM POR TEREM FERIDO DE MORTE O SEGMENTO BRASILEIRO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. Fazemos votos que possam dormir tranquilos e com suas consciências leves com a sensação de dever cumprido a nação brasileira!

​​*Ricardo de Azevedo Soares é diretor do Sisejufe e coordenador do Departamento de Acessibilidade e Inclusão (DAI)

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