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Cotas raciais: "lugar de negro é na senzala!"

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Por Jean Loiola, servidor do MPU e dirigente da Fenajufe

Este artigo é de inteira responsabilidade dos autores, não sendo esta, necessariamente, a opinião da Diretoria da Fenajufe

Tenho dito às pessoas que, por ocasião das eleições, não farei apologia em redes sociais deste ou daquele candidato, em parte me somando ao coro de muitos que estão insatisfeitos com vários aspectos dos atuais governos. Por outro lado, também não quero me somar àqueles que a todo custo farão campanha contra os atuais governos, mesmo que à custa de projetos que julgo ser de grande relevância para nosso país. Supor que defender determinadas causas é sinônimo de defender cegamente os governos que eventualmente as abrigaram é obtuso.

Extrapolada essa dicotomia de Fla-Flu, quero centrar minha militância, reafirmo, em causas e projetos. E uma causa que tem ganhado corpulência é o debate sobre cotas raciais.

Antes de tudo, assumo minha condição de leigo sobre tema. Não sou cientista social, jornalista, cientista político, historiador e tampouco apto a discutir juridicamente o assunto. Sou um cidadão. Pronto. E como tal quero opinar.

Confesso que, anos atrás, eu tinha uma visão reticente com relação às cotas raciais, me rendia ao discurso das cotas sociais relacionadas à baixa renda. Estudava na Universidade de Brasília, pioneira do sistema de cotas raciais, que por lá completou 10 anos em 2014, por isso mesmo a questão ocupava frequentemente os debates, os corredores e as aulas, mesmo aquelas nada afeitas a temas sociais.

De lá para cá, com dez anos a mais de leituras, opiniões, conversas, viagens e por que não dizer, maior maturidade e aguçamento de meu olhar social, chego à conclusão que hoje me parece óbvia: cotas raciais para ensino superior e serviço público são necessárias e sobretudo justas!

Os dados que alicerçaram minha opinião começam lá no outro lado do Atlântico, no continente africano. A selvageria atroz cometida pelos europeus contra o povo negro da África subsaariana faz Genghis Kan, com seus atos violentos, parecer um vilão de playstation de “games for kids”.

Embora haja inexatidão, estima-se que mais de 13 milhões de africanos foram escravizados e trazidos para as Américas. É um quantitativo 30% maior que toda população atual da Bolívia, por exemplo. Imagine em termos demográficos o que isso representava proporcionalmente à população existente no século XVIII. É muita gente.

Em meados do século XIX, a população brasileira não chegava a 4 milhões de habitantes e, desses mais da metade eram escravos. Aqui chegando eram tratados como animais. Pude visitar exposições e ver documentos de propriedade e livros-caixas de comércio de pessoas negras no Brasil. Correntes, artefatos de aprisionamento e açoites. Regras de açoites. Sim, havia regras de como chicotear um escravo! Algo bizarro e inimaginável. Homens e mulheres especificados como quem compra um animal numa feira agrícola.

Tive a oportunidade de visitar o Senegal, conheci a Ilha de Gorée, principal entreposto do comércio de escravo, por sua posição geográfica estratégica: o ponto de menor distância entre o continente africano e a América. Conheci as celas. Ouvi os relatos dos guias sobre as condições de transporte nas embarcações. Muitos morriam já na viagem ou chegavam moribundos, doentes e famintos. Não tive condições de abstrair tamanho sofrimento.

Quando eu era criança, a Princesa Isabel me foi “vendida” como uma espécie de heroína de aventuras Marvel, lutando contra tudo e contra todos pela “libertação” dos escravos. Bobagem. Em que pese a luta genuína de vários abolicionistas do fim dó século XIX, a lei áurea atendeu tão somente a um cálculo de vantagem mercantil. Passou a ser mais lucrativo “assalariar” um negro que assumir o custeio de alimentação, estrutura de abrigo, pessoal para evitar fugas, a morte precoce pela vida de açoites e trabalhos forçados, sem falar no próprio custo da aquisição – sempre que escrevo o termo aquisição para me referir a uma pessoa me soa estranho, mas a palavra de fato é essa.

No Rio de Janeiro pós-abolição, o povo negro, supostamente liberto, não mais morava – assumindo benevolentemente o verbo “morar” como aplicável às condições de prisão em que os negros viviam – nas casas grandes e rapidamente ocupou áreas inóspitas próximas aos centros urbanos, onde estavam as chances de sustento. Temos aí a gênese das favelas.

Preciso ser óbvio, mas alguém realmente acha que os negros tinham as mesmas chances salariais ou de emprego de brancos? Eram considerados não humanos e alguém acha que depois de maio de 1888 passaram a ser tratados como cidadãos?

Essas contradições perduram por décadas. Os dados do IBGE são irrefutáveis: os negros ganham menos que brancos, compõem a maior parte da população de baixa e baixíssima renda, já nas classes abastadas é bem diferente. A origem disso é histórica.

Não bastasse isso, continuam a sofrer preconceito, vide o episódio recente do jogador Daniel Alves. Contudo, sempre há um obtuso – porque dizer cretino é muito forte – que falará: “conheço um negro, de origem humilde, que lutou, estudou e chegou lá”. Tenha a santíssima paciência, minha gente. Não basta o racismo, o gueto urbano, a renegação social, ainda me aparece alguém para dizer, com um argumento desses, que a população negra é indolente, afinal “se a pessoa estudar e batalhar ela chega lá”. Usar a exceção como regra expõe, nesse caso, nosso racismo recôndito.

Como conferir dignidade e reparar o dano causado ao povo negro? No Senegal, ouvi de uma autoridade local que uma indenização internacional, tema recorrente quando se fala em compensação pelo mal causado aos africanos, seria uma solução simplista e inócua para expiar a culpa dos europeus. Não basta pagar, aliás, os militantes da questão racial refutam essa solução. Seria fácil demais. O reequilíbrio passa pela adoção de medidas afirmativas que corrijam as distorções mostradas nas estatísticas sociais.

Alguém realmente acredita que, se não fosse a adoção de políticas de cotas, os EUA teriam um presidente negro? “Ah, mas lá é diferente, no Brasil não tem racismo!” Dirão os incautos. Oi? Não tem racismo? Trabalho no Ministério Público. Em minha unidade existem mais de 300 promotores e procuradores. Cargos da elite do serviço público. O número de negros que ocupam a posição não chega a 10. Essa desproporção se repete na magistratura, na carreira diplomática e em tantos outros nichos privilegiados do serviço público. Já nos serviços gerais e na limpeza urbana... Por que isso ocorre? "Porque os negros seriam menos esforçados então não passam no concurso"? Essa é a conclusão sofismática que se pode inferir no discurso raso da meritocracia. A razão dessa realidade começou lá na Ilha de Gorée. Nas faculdades de Medicina, cujos alunos são oriundos de escolas privadas, de mensalidades bem salgadas, a quantidade de negros era praticamente nula antes das cotas. 

Diante disso outros tantos afirmam: “o problema então está na educação, isso se extingue com melhores escolas”. Não duvido. Enquanto as tais escolas não surgem, o que fazemos? Políticas de cotas são eficientes para, num prazo relativamente curto, promover igualdade racial e minorar as disparidades. E não excluem a necessidade de aperfeiçoamento de nosso sistema escolar.

Estudos da própria UnB mostram que o desempenho dos cotistas é compatível com os demais discentes, refutando o argumento de que não teriam condições de concluir o curso por supostamente não terem base ou se submetido à nada democrática peneira de acesso ao ensino superior concorrendo com os alunos egressos das escolas da elite branca brasileira.

A implementação de cotas em concursos é um avanço e uma medida, além de corajosa, necessária para vencer o fosso social abissal entre brancos e negros em nosso país.

As redes sociais têm sido pródigas em mostrar as contradições de nosso povo, que pouco a pouco começa a sair do armário e assumir seu racismo geracional, guardado e repassado como uma herança social nefasta desde nossa colonização. Os argumentos contra as cotas, quando não pautados em desinformação, carregam uma dose cavalar de reacionarismo e hostilidade racial.

Quando a pauta é a adoção de políticas que promovam igualdade racial, a assunção do racismo brasileiro ganha mais fulgor, como que a constituir um recado, nem sempre inconsciente, vindo dos capitães-do-mato: "lugar de negro é na senzala!".

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